PREFÁCIO
Manifestar-me sobre texto que ostente o nome de ¨O LUGAR E O TRIBUTO” é, no mínimo, inusitado. Há construções linguísticas sobre os critérios de vigência espacial, temporal, material e pessoal, tanto das normas jurídicas, quanto dos instrumentos introdutórios que as põem no sistema. Por outras perspectivas epistemológicas, esse tópico costuma ser observado também pelo ângulo da validade e da eficácia, compondo a trilogia sobre a qual Pontes de Miranda tão bem desenvolveu suas sofisticadas construções doutrinárias. Mas o título sugere algo mais específico, apresentando modo de aproximação cognoscitiva que surpreende o leitor interessado, ao conduzir sua consciência por caminhos diferentes, oscilando entre as categorias fundamentais do intelecto humano, em ascese temporária, para projetar-se no plano da realidade tangível, com inesperado sentido de praticidade. Aquilo que Edmund Husserl chamou de o “mundo da vida”, expressão eloquente para exprimir o campo das relações intersubjetivas, revela-se uma dimensão favorável, território fecundo em que o Autor testa suas meditações e aprofunda seus enunciados proposicionais para ilustrar o pensamento, exibindo, com isso, a procedência das asserções emitidas. Atinge, por esse caminho, aquele nível de elaboração que congrega a teoria e a prática, a ciência e a experiência, tudo organizado no âmbito do mesmo universo de discurso.
A multiplicidade de aspectos em que se apresenta o tecido social, na sua riqueza inesgotável, sugeriu ao jovem professor um dilema: ou tratar a matéria na singeleza do encontro inicial, em que a pragmática da comunicação humana ofereceria maneiras atrativas de propor enunciados práticos e diretos para a solução de problemas; ou considerá-lo nos horizontes de uma visão mais ousada, mais atrevida, conferindo as significações usuais com as estruturas de uma concepção filosófica ampla, abrangente, que partisse de premissas expressamente declaradas e se locomovesse num plano consistente, ainda que tal movimentação viesse a lhe custar o esforço da mente e os desgastes naturais de quem se decide lidar com tais atos de consciência. Nesta segunda opção incidiu sua escolha, comedida e determinada. Lembrou-se, certamente, do que pensou Lourival Vilanova (As Estrutura Lógicas e o Sistema de Direito Positivo, Noeses, 4ª edição, p. 149): Se a Ciência do Direito aspira a ser ciência, e não um agregado de proposições sem fim cognoscitivo, mas com propósito ideológico; se pretende ser um sistema de proposições teoréticas sobre o direito positivo, e não um amálgama de enunciados psicológicos, sociológicos, históricos, filosóficos, descritivos uns, prescritivos outros, tudo em impuro contubérnio metodológico, precisa: i) delimitação de seu campo de conhecimento; ii) unidade metodológica; iii) teoriticidade em sua finalidade; e iv) sistema ou estrutura formal, articulando as proposições constitutivas desse setor do conhecimento.
Começa por aí o valor inestimável que atribuo ao presente texto, pois, como protoformas lógicas, os conceitos puros ou categoriais, assim o espaço, o tempo, a causalidade, a imputabilidade, em que se inserem os dados de fato da experiência, o real mesmo em sua concreção existencial, estão por reclamar, incessantemente, a criação de novas ideias, de diferentes modos de associação, que só uma atitude atenta e introvertida do observador poderia propiciar. E foi assim que Lucas Galvão de Britto, mencionando sua insatisfação com as doutrinas existentes sobre os aspectos espaciais que a linguagem jurídica costuma utilizar, enfrentou o desafio de dissertar acerca de assunto tão relevante para a análise do fenômeno jurídico.
Esse tipo de trabalho cobra do autor uma postura definida: exige dele o compromisso sério de declarar sua cosmovisão jurídica, oferecendo a amplitude das concepções que adota, montadas na forma superior de sistema. Dito de outro modo, reivindica uma tomada de posição firme, que não se compadeça com a produção de enunciados quaisquer, emitidos para superar dificuldades episódicas e ocasionais.
Considerações dessa ordem permitem compreender, desde logo, o porquê da estrutura sumarial que apresenta no início de sua obra, dividida em três capítulos e seguida de resumo conclusivo. Há, contudo, linhas de introdução, intervalo reservado aos questionamentos inaugurais: a) por que estudar o critério espacial? b) da insuficiência dos modelos teóricos atuais; c) do plano da obra; e d) do propósito do trabalho.
Chamou-me a atenção a ausência referida no item “b” e a ela me referi com as seguintes palavras: São pobres as pesquisas científicas atinentes ao critério espacial das hipóteses tributárias. Esbarra a doutrina, ainda, em problemas elementares como o que ventilamos. Quem sabe fosse bom admitir a pertinência das velhas teorias do Direito Penal dobre o locus delicti em termos de aprofundar-se o inquérito científico tributário, uma vez que nosso legislador, consciente ou inconscientemente, acabou recolhendo conclusões emergentes das teses da nacionalidade, do resultado (ou do efeito típico) e da atividade, para construir a estrutura orgânica dos diversos tributos. O motivo seria mais que suficiente para espertar o desenvolvimento de estudos que, por certo, viriam a enriquecer setor do Direito Tributário carente de reflexões e paupérrimo de alternativas. (Curso de Direito Tributário, Saraiva, 26ª edição, p. 267).
No primeiro capítulo, faz a apologia do corte, a inevitável providência do espírito para a compreensão do mundo circumposto ao sujeito transcendental, em linguagem kantiana, aquele que se põe em função cognoscente perante o objeto. Eis o grande instrumento de aproximação! A própria natureza do ser humano, assinalando os padrões de sua finitude existencial, já põe os limites inexoráveis do homem no curso da trajetória possível pelo mundo. Também aqui, acudiu à mente do Autor a incisiva afirmação de Pontes, no seu O Problema Fundamental do Conhecimento: o cindir é desde o início. O âmbito dos nossos sentidos, marcado por fronteiras intransponíveis, é, por si só, um convite irrecusável à redução das complexidades. É cortando para simplificar, para reduzir, que o agente do conhecimento avança e pretende dominar a realidade em que está imerso. Mas, discorrer sobre o corte é falar acerca de categorias e procedimentos lógicos que não poderiam estar à margem deste discurso, pois, se o cindir é tão importante, como empreendê-lo para dar sequência ao conhecimento? Ingressam, portanto, com o caráter de necessidade, os estudos sobre o ato de definir, as funções e tipos de definição, bem como os conceitos de conotação, de denotação e outras técnicas para construir definições. Além disso, noções básicas sobre a teoria das classes enriquecem esse momento preambular.
Em continuidade ao desenvolvimento do primeiro capítulo, Lucas Galvão de Britto toca, com propriedade, numa premissa decisiva para dar a conhecer a fisionomia efetiva da vertente filosófica e jurídica pela qual optou: direito e linguagem; a prescritividade das condutas e a importância dessas notas para a incisão metodológica que vai orientar o seguimento de seu texto. Os fatos e as condutas, sempre expressos em linguagem competente, são, para ele, o contradomínio do sistema de normas. Linguagem e sobrelinguagem, prescritiva uma, crítico-descritiva a outra.
Ainda no capítulo primeiro, o Autor ingressa nos domínios do direito positivo para opinar sobre as normas jurídicas, em sentido amplo e em sentido estrito, sua necessária base empírica, sua organização lógico-sintática, salientando a dualidade suporte físico e plano das significações. Mostra-se convicto: somos nós que atribuímos sentido aos enunciados prescritivos do direito posto, mediante o processo da interpretação, compondo, por assim dizer, o conteúdo das normas jurídicas que, articuladas segundo as regras de formação e de transformação, atingem o mais elevado nível lógico que é o de “ser sistema”. Agora, do reconhecimento das estruturas normativas para alcançar o tópico da regra-matriz de incidência tributária é uma passagem rápida, sem recursos estratégicos especiais, algo para que o raciocínio evolui sem atropelos e sem aqueles expedientes que encontram na (má) retórica seu lugar-comum. Transita do arcabouço das normas jurídicas em sentido estrito, no seu perfil de expressão mínima e irredutível de manifestação do deôntico, para a regra-matriz dos tributos, com o passo decidido de quem se locomove com serenidade e leveza de raciocínio, dispensando qualquer esforço digno de nota.
Confesso que li com redobrada atenção e enorme interesse o escrito do Autor, na integridade de sua extensão, mas o capítulo primeiro, mesmo para uma análise solitária e independente, aparece como base de sustentação muito bem tecida e elaborada com noções preciosas de Filosofia e de Teoria Geral do Direito. Acredito que poderia descolar-se do trabalho total para aspirar à condição de texto individualizado, feixe de proposições com unidade de sentido.
No capítulo segundo, Lucas se ocupa do espaço no Direito. Afinal de contas, se o livro é sobre o Lugar e o Tributo, nada mais óbvio do que saber como o legislador lida com os condicionantes de tempo e de espaço. Legislador, entendido aqui como todo aquele que insere normas no ordenamento positivo, como o poeta da linguagem jurídica, aquele que cria, que concebe, o responsável, enfim, pela palavra inesperada, pelo gesto inusitado. Não basta dizer que o direito é o senhor do espaço e do tempo. Na verdade, como é ele quem cria a linguagem jurídica, é o senhor de tudo, não somente daquelas condições a priori da sensibilidade, na terminologia de Kant. É nesta repartição do trabalho que o Autor, percorrendo o pensamento de filósofos importantes, empreende paralelo sugestivo com o Direito Penal, ao traçar os contornos materiais do fato delituoso e as indicações espaço-temporais do crime. O capítulo segundo é a grande plataforma de reflexão que vai permitir ao Autor, servindo-se dos pressupostos discutidos e estabelecidos no capítulo inaugural, projetar-se no território dos tributos, para concluir sua pesquisa. Quem quiser testar a congruência de seu raciocínio, ao versar este assunto, que deposite a atenção nesses laços de ligação que conectam o capítulo primeiro ao segundo, tendo em vista pousar no terceiro. Penso que nessa combinatória estão os elementos que garantem a coesão e a consistência da obra.
O capítulo terceiro é dedicado à competência, território e lugar no direito tributário. E a incidência recebe tratamento minucioso por parte de Lucas. Aliás, transmite a convicção de que rejeita o incidir automático e infalível das normas jurídicas, com o simples verificar-se, no plano da realidade físico-social, dos acontecimentos hipoteticamente descritos nos antecedentes normativos, proposta que vigorou, e ainda vigora, em função da euforia que o Código de Napoleão proporcionou, gerando mais certeza e segurança para os destinatários dos preceitos jurídicos. O Autor está convencido da necessidade da presença do ser humano, numa posição intercalar, movimentando as estruturas prescritivas, para que as normas gerais e abstratas cheguem ao nível das condutas intersubjetivas. Daí avante, o agora mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo examina o critério espacial em face do domínio espacial de vigência, extraindo ponderações sutis, quase todas elas elucidadas por exemplos, recurso enunciativo que apoia o conhecimento, iluminando a compreensão do objeto. Refere-se, também, à dicotomia lugar do fato e lugar no fato, tão útil para direcionar o raciocínio de quem especula. E encerra essa parte enunciando os cinco constrangimentos à liberdade de escolha do lugar do tributo, para tecer sugestivas observações a respeito de cada qual: i) a distribuição de competências na Constituição da República; ii) a territorialidade; iii) conceitos de Direito Privado; iv) normas gerais de direito tributário; e v) tratados internacionais.
Quero crer que o livro que a Editora Noeses faz publicar situa-se no altiplano da teoria geral do direito tributário, como texto científico que é, porque fala sobre o direito positivo, mencionando leis de hierarquias diversas, mas não se esquecendo da contribuição sempre relevante da jurisprudência. O caráter de ciência, contudo, vem penetrado por oportunas anotações de teoria geral e acompanhado, intensamente, por meditações de ordem filosófica. Esse tripé, equilibrado e bem distribuído, dá estabilidade à obra, afastando-se do tratamento meramente técnico que caracteriza os trabalhos existentes sobre a matéria. A despeito disso, porém, a preocupação com os modelos da experiência, refletidos na presença de numerosos e adequados exemplos, dá um sentido de praticidade objetiva que facilita a leitura e contribui para aumentar o interesse pelo assunto.
Lucas Galvão de Britto vem cumprindo uma trajetória que poderia dizer-se auspiciosa na carreira acadêmica. Já desponta como autor de artigos doutrinários importantes e seu talento de professor e conferencista chama a atenção dos mais credenciados representantes da comunidade jurídica. A par dessa habilidade voltada à reflexão sobre temas filosóficos e jurídicos, sua eficiência retórica, imprescindível no exercício da advocacia, favorece uma atuação profissional do mais alto nível.
É com grande prazer, portanto, e com entusiasmo, que aceitei o convite para prefaciar esta obra, certo do seu valor e da utilidade que o presente livro pode ter no contexto dos altos estudos de direito tributário no Brasil.
São Paulo, 14 de agosto de 2.014
Paulo de Barros Carvalho
Professor Emérito e Titular da PUC/SP e da USP
Introdução
Por que estudar o critério espacial?
Era o final da manhã de um sábado, 12 de maio, quando o voo G3 1902 partia de Guarulhos com destino a Natal. Já sobrevoávamos algum lugar do espaço aéreo sobre o Estado de Minas Gerais – ou seria da Bahia? – quando uma comissária de voo, com o sorriso que lhe serve de uniforme, ofereceu-me menu para que escolhesse o lanche da viagem. Ao lado da pequena relação dos sanduíches, doces, bebidas quentes e frias, havia a indicação do preço da mercadoria. Escolhida a “sugestão do chef”, paguei a atendente e recebi, além do alimento, um “Documento Auxiliar de Venda” cuja redação logo denunciava que transações como essa estariam sujeitas à incidência do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS.
Sabendo-se que a referida exação compete aos Estados em cujos territórios sejam praticadas as operações de circulação de mercadorias, restava a pergunta: a qual Secretaria da Fazenda competiria a cobrança do tributo devido em razão dessa operação? Seria aquele da partida da aeronave, São Paulo? O destino, Rio Grande do Norte? Aquele sobre o qual sobrevoávamos no preciso instante, Minas Gerais (ou talvez Bahia)? O do registro da aeronave? Seria essa uma operação interestadual?[1]
Ao mesmo tempo em que fico a me perguntar, uma sociedade empresarial sediada em Oak Brook, Illinois, Estados Unidos da América, com estabelecimentos espalhados em vários países, dentre eles o Brasil, continua sua incessante atividade cujo faturamento anual é estimado em 27 bilhões de dólares norte-americanos. Sua renda decorre de milhões de operações perpetradas ao redor do globo terrestre e seus departamentos jurídico e contábil têm, nesse instante, a mesma dúvida que tenho: onde é devido o tributo?[2]
Seria possível multiplicar indefinidamente os exemplos trocando os agentes envolvidos, inserindo um ou outro elemento novo na operação, mas a dúvida central permaneceria a mesma: qual é o lugar de incidência do tributo?
A importância da pergunta faz-se sentir na mesma medida em que cresce a complexidade geográfica da ação humana. Com enorme frequência, as interações pessoais expandem-se para além dos marcos territoriais de um município, estado ou país. O progresso tecnológico, que se fez sentir com mais intensidade no século passado e se apressa a cada novo dia, é o grande responsável por mudanças radicais na forma como o homem contemporâneo relaciona-se com as distâncias, encurtando-as, em seu contato com o próximo. Com toda a potencialidade de interações trazidas pelos novos canais de contato, o outro nunca esteve tão perto.
É chegada então a hora de lançar as perguntas em torno das quais correrá o raciocínio e que conduzirão à propositura de um modelo interpretativo para o critério espacial da regra-matriz de incidência tributária. Um esquema que seja mais preciso e condizente aos reclames de uma realidade social cada vez mais difusa em sua geografia e complexa em seus fatores organizacionais.
Da insuficiência dos modelos teóricos atuais
Em certo sentido, pode-se afirmar que a maior parte dos estudiosos que versaram sobre a teoria da norma tributária também trataram deste assunto. Seja chamando-o de aspecto espacial,[3] critério espacial,[4] inserindo-o em meio à noção de territorialidade,[5] ou mesmo para criticá-la, falando de sua falsa obviedade.[6]
Entretanto, o trato dedicado à matéria é raso, raramente ultrapassando o intervalo de um par de páginas em meio a livros que empregam maior atenção a outras variáveis da norma tributária. Admite-o PAULO DE BARROS CARVALHO, referindo-se à confusão entre domínio espacial de vigência e critério espacial: “São pobres as pesquisas científicas atinentes ao critério espacial das hipóteses tributárias. Esbarra a doutrina, ainda, em problemas elementares, como o que ventilamos.”[7]
Como resultado disso, um grande número de trabalhos sobre as várias espécies tributárias aponta como critério espacial a coincidência de extensão com o território da pessoa tributante. Trata-se de proposição que não resiste ao crivo da experiência, como mostram bem os exemplos acima arrolados. Se o critério espacial do ICMS fosse simplesmente “território do estado” e estivermos diante de venda e compra de alimentos a bordo de aeronave em voo interestadual, rapidamente sobreviria nova pergunta qual território? Reflexo de outra, mais elementar, qual o lugar do tributo?
Avanços interessantes foram registrados pelos estudos encarregados do exame da tributação em operações internacionais, por meio dos elementos de conexão. Este progresso, no entanto, é feito muitas vezes à revelia das premissas que dão consistência a uma teoria da norma, imiscuindo no exame do momento elementos alheios ao corte metodológico proposto na construção de uma teoria jurídica sólida, como o recurso a noções econômicas e políticas sem a correspondente referência ao direito positivo. São ideias atraentes, mas com fracos fundamentos epistemológicos. Tal circunstância dificulta o sustento dessas teses em meio a um debate rigoroso, como deve ser o da teoria jurídica.
A experiência reclama da teoria maiores avanços neste domínio, a fim de que esta possa contribuir para o desenvolvimento de novos discursos, marcados pela precisão que a prescritividade jurídica exige como condição de sua eficácia. Foi da insatisfação com a precisão analítica dos atuais modelos que surgiu a ideia para o livro.
Do plano da obra
Todo o texto subsequente será dividido em três capítulos cuja síntese conclusiva será feita sob a forma de proposições numeradas, apostas no final do texto.
No curso do Capítulo Primeiro enunciarei as premissas de que parto, os fundamentos lógicos e algumas categorias fundamentais cuja compreensão torna-se indispensável para o desenvolvimento do raciocínio deste trabalho. Ali dedicarei especial atenção a dois itens: (a) nas regras lógicas que orientam os processos de classificação e definição; e (b) na descrição da regra-matriz de incidência tributária como técnica interpretativa. A informação é duplamente útil: se, por um lado, serve de fundação para a tessitura dos parágrafos seguintes, por outro, constitui itinerário para a conferência, pelo leitor, da correção dos avanços e resultados propostos.
O corpo do Capítulo Segundo reúne observações hauridas nos campos da filosofia e da semiótica para, conjugados aos avanços da doutrina penalista na investigação do locus delicti, apontar quais são as categorias fundamentais à compreensão das relações espaciais envolvidas no processo de subsunção. É um esforço que parte da filosofia no direito para, incursionando no campo do direito penal, despojá-lo das peculiaridades ínsitas a esse domínio normativo e, assim, identificar os contornos das categorias espaciais que se repetem na incidência de toda e qualquer norma jurídica.
De posse desse instrumental, será possível transpor esses conceitos para a compreensão da matéria tributária, e identificar, no Capítulo Terceiro, os fundamentos de uma teoria do lugar do tributo, melhor circunscrevendo o papel desempenhado pelo critério espacial e relacionando-o à categoria de domínio espacial de vigência. Tais esforços mostram-se etapas imprescindíveis para a identificação dos constrangimentos que o sistema jurídico impõe à livre estipulação do lugar atribuído pela lei como o da ocorrência do fato tributado.
Do propósito do livro
Meu propósito com este livro é levar adiante a reflexão sobre a maneira como nos referimos ao espaço para tratar do fenômeno da incidência tributária.
Nesse espírito, as páginas que seguem se dedicam menos à coleção de dispositivos legais e ementas jurisprudenciais que trataram a matéria, preferindo a meditação detida e a derivação lógica do raciocínio a partir de um elenco de premissas bem firmado. A referência a julgados e legislação esparsa, portanto, ocupa o lugar destinado aos exemplos, servindo de teste às categorias construídas no decorrer do livro.
Por isso mesmo, aquele que vier à cata de respostas rápidas a respeito desse ou daquele tributo, possivelmente terminará a leitura frustrado. Já o leitor que pretenda potencializar a precisão de seu discurso jurídico no que diz respeito às relações espaciais, encontrará aqui bons instrumentos e categorias que lhe permitirão tratar, com propriedade, das peculiaridades espaciais de tributos que estejam em qualquer ordenamento e em qualquer tempo.
As categorias aqui propostas auxiliam o trabalho de organização de sentido dos textos já legislados e seu cotejo com as prescrições do ordenamento jurídico brasileiro que dispõem a respeito dos limites espaciais ao exercício da competência.
Nutro a convicção de que tal conhecimento será de boa valia para aqueles que lidam com a técnica legislativa, participando da confecção dos textos que irão compor a legislação fiscal, e especialmente para aqueles que lidam com a incidência dos tributos: advogados, procuradores, juízes, auditores fiscais, e demais estudiosos do direito tributário.
[1] Para satisfazer a curiosidade do leitor: as normas que regem o assunto estipulam ser o local de partida da aeronave, aquele no qual se dará a incidência do tributo, independentemente de outras marcas espaciais envolvidas no acontecimento econômico, como o território do estado sobre o qual esteja a aeronave ou a ele se destine. Confira-se o dispositivo do Ajuste SINIEF 07/2011, Cláusula Segunda, §3º: “A base de cálculo do ICMS será o preço final de venda da mercadoria e o imposto será devido à unidade federada de origem do voo.” Observe-se que tal decisão quanto ao lugar da incidência dá-se em harmonia com o disposto nos arts. 11, I, “a” e 12, I e II, da Lei Complementar nº 87/96. A propósito da função da lei complementar e do uso de convênios e ajustes para regulamentar o local de incidência do tributo, ver item 5.4.2. do Capítulo Terceiro.
[2] A resposta precisa a esse problema dependeria da coleta de mais informações sobre o caso e, também, do cotejo das legislações dos países nos quais estão situados os diferentes estabelecimentos. O propósito deste livro não é o de responder direta e objetivamente a esse tipo de pergunta, mas sugerir itinerário seguro ao intérprete para que ele possa organizar os textos jurídicos em respostas bem urdidas para esse tipo de problema.
[3] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. São Paulo: Malheiros, 2008, passim.
[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, passim.
[5] FALCÃO, Amilcar de Araújo. Fato Gerador da Obrigação Tributária. São Paulo: Noeses, 2013, passim.
[6] BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2010, passim.
[7] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 265.