A temática na qual estão envoltas as infrações e as sanções tributárias, posta ao lado das questões atinentes ao tratamento dispensado aos tributos em geral, tem sido objeto de poucos estudos nos domínios da dogmática tributária brasileira, o que revela-nos duas premissas igualmente falsas: ou o tema das sanções tributárias receberia o mesmo tratamento doutrinário e jurisprudencial conferido às obrigações tributárias em geral – até porque a sanção tributária tem a mesma estrutura normativa –, e, portanto, todas as proposições científicas produzidas sobre o tributo serviriam para explicar as sanções tributárias; ou, inversamente, as sanções tributárias seriam espécies de sanções penais ou administrativas, e, portanto, bastaria ao intérprete do Direito Tributário importar definições de conceitos produzidas nas searas do Direito Penal ou do Direito Administrativo.
Essa intertextualidade, necessária ao atilado estudo de qualquer temática jurídica, dada a inafastabilidade de sua análise sistêmica, requer cuidado redobrado nas “importações semânticas” de conteúdos que cada setor do conhecimento produz na sua pragmática própria. Esse cuidado foi decisivo para a excelente tessitura que o presente trabalho ostenta, alicerçado em premissas de teoria geral do Direito, Direito Constitucional e Direito Tributário, para então ingressar na temática específica das sanções tributárias.
O trabalho que o leitor tem em mãos, produzido pela Professora Maria Ângela Lopes Paulino Padilha como requisito parcial para conclusão do Mestrado em Direito Tributário na PUC/SP, põe às claras as variáveis que estão por trás das diversas correntes doutrinárias experimentadas pelo tema, e, mais que isso, explica as consequências que essas abordagens tiveram para subnutrir os estudos das infrações e sanções no Direito Tributário brasileiro.
Nessa toada, cabe bem observar as asserções que o trabalho produz sobre o conteúdo semântico da culpabilidade em matéria de sanções tributárias. Com efeito, dispõe o art. 136 do CTN, que, a menos que a legislação disponha em sentido contrário, a aplicação das normas sancionatórias independe da intenção do agente, da existência ou extensão dano causado ao Erário.
Sob esse argumento, parte expressiva da doutrina brasileira sustentou que a responsabilidade por infração tributária seria objetiva, prescindindo, assim, de demonstração de culpabilidade do agente infrator. Com isso, o dolo – genérico ou específico – e a culpa, em sentido estrito, nas suas três modalidades (negligência, imprudência ou imperícia), foram institutos quase banidos dos estudos do Direito Tributário sancionatório, apesar de – e esse detalhe importante foi solenemente ignorado por boa parte dos estudos nacionais –, a legislação a que se refere o art. 136 do CTN, sempre dispor em sentido contrário, prevendo o dolo ou mesmo a culpa como elemento nuclear das multas qualificadas, nos termos dos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/64.
Como dito, o trabalho é preciso não só por apresentar discurso claro, resultado de longas reflexões, mas também por firmar suas posições em uma teoria de base, perpassando pelos temas que são-lhes correlatos, desenhando todo o percurso de seu raciocínio, garantindo assim que o leitor possa refazê-lo em seus mais tênues detalhes. É assim que desenvolve os três primeiros Capítulos da obra.
Já a definição e aplicação dos princípios constitucionais tributários na conformação das normas tributárias sancionatórias, em sentido estrito, ganham análises esmeradas no Capítulo 4; valendo destacar a ênfase conferida à legalidade, tipicidade, ampla defesa e contraditório (devido processo legal na dimensão adjetiva), e proporcionalidade (devido processo legal na dimensão substantiva) em matéria de sanções tributárias.
Ainda sobre o alcance dos princípios constitucionais tributários e as respectivas forças normativas que eles possam exercer na construção das regra-matrizes das sanções tributárias, a compreensão do texto ante às questões envolvendo as multas tributárias reside em saber os limites das alíquotas e das bases de cálculo juridicamente possíveis das multas. Ao derredor dessas duas variáveis que compõem o critério quantitativo giram os estudos do Direito Tributário sancionatório, abrindo espaço para cogitações acerca da incidência dos princípios da capacidade contributiva e da vedação ao confisco.
Mesmo aqueles que afastam a incidência desses dois princípios constitucionais tributários, ao argumento de que eles têm densidade normativa apenas sobre a composição das regras-matrizes dos tributos, não deixam de fazer associações com o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade em sentido amplo, tidos como vetores de todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Outro ponto que o trabalho, orgulhosamente por mim prefaciado, dá alentado passo em direção às proposições tradicionais da doutrina pátria, é o que fixa indelevelmente novas diretrizes para o melhor equacionamento da velha polêmica sobre a “natureza jurídica das multas tributárias”, que insiste em fazer a distinção entre multas punitivas e multas indenizatórias.
Neste ponto, a Autora preleciona que multas tributárias são sempre punitivas, porque, na estrutura sintática, o antecedente da regra-matriz estabelece critérios que, uma vez positivados em normas individuais e concretas, constituem fatos jurídicos ilícitos.
Com o isolamento epistemológico apenas do lugar sintático do antecedente normativo, não há grandes problemas interpretativos, visto que a natureza ilícita sobressai com pouco esforço. A complexidade da análise avoluma-se quando deslocamos nossa atenção para o consequente da norma sancionatória, precisamente para a base de cálculo, onde verificamos nível mais elevado de dificuldade, quer em razão da relação que ela exerce (a base de cálculo) com o fato jurídico ilícito – alojado no antecedente – confirmando-o, infirmando-o ou afirmando-o, quer em razão da análise de sua função mensuradora, isto é, na capacidade que a base de cálculo deve ostentar para medir adequadamente as proporções do fato jurídico ilícito.
Mas não é só: e quando o fato jurídico ilícito representar o descumprimento de um dever instrumental? Neste aspecto pontual também a abordagem do presente trabalho é excelente.
Numa sessão memorável, tive a honra de integrar a banca examinadora que arguiu a então candidata ao título de mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Maria Ângela Lopes Paulino Padilha, onde, juntamente com o seu orientador, o Professor Titular e Emérito Paulo de Barros Carvalho, e o Professor da USP, Paulo Ayres Barreto, um arsenal de questões foram-lhe formuladas. Sem surpresas, a candidata respondeu todas as indagações, utilizando como instrumental teórico as premissas epistemológicas com as quais trabalha o Constructivismo Lógico-Semântico, tal qual havia exposto no trabalho escrito.
O tema hoje fervilha a jurisprudência administrativa e judicial brasileiras, com questões importantes sobre todos os critérios constituintes das regras-matrizes das diversas multas tributárias vigentes em nosso ordenamento jurídico. O livro da Professora Maria Ângela, destrinchando os meandros dessas regras-matrizes sancionatórias, estabelece balizas seguras para qualquer estudioso do Direito Tributário sancionatório, examinados os critérios material (o ilícito tributário), espacial (determinação geográfica de ocorrência do ilícito) e temporal (notas que indicam circunstância de tempo de sua ocorrência), bem como os critérios do consequente, o quantitativo (com a determinação da base de cálculo e alíquota que mensurem o débito tributário sancionatório) e o pessoal (delimitando as pessoas envolvidas na relação sancionatória).
Este livro – não receio em afirmar – será um sucesso, porque a Autora marca a sua trajetória jurídica pelo zelo no que fala e escreve. Por isso, parabenizo o orientador da Autora, Professor Paulo de Barros Carvalho, pelas lições que alicerçam a escola do Constructivismo Lógico-Semântico, vivamente aplicadas neste trabalho.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), instituição em que a Professora Maria Ângela cursou a graduação e o mestrado; ao Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), que tem em seu quadro essa jovem e talentosa pensadora do Direito Tributário brasileiro, e, finalmente, à Editora Noeses, que garante a ampla divulgação desses escritos, com sua mais nova publicação.
Robson Maia Lins
Doutor e Mestre. Professor da PUC/SP, nos Cursos de Graduação.
ÍNDICE
PREFÁCIO
APRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
1 A LINGUAGEM DO DIREITO POSITIVO: NOÇÕES FUNDAMENTAIS
1.1 A linguagem como condição para o conhecimento: a concepção do movimento filosófico denominado “giro-linguístico”
1.1.1 O conhecimento jurídico
1.2 Direito Positivo: definição do conceito
1.2.1 Sanção, coação e coerção: a sanção coercitiva como elemento distintivo do sistema jurídico em relação a outros sistemas normativos
1.3 A hermenêutica jurídica e a teoria dos valores
1.3.1 A interpretação dos textos jurídicos
1.3.1.1 O percurso gerador de sentido dos textos jurídicos
1.4 O fenômeno da incidência das normas jurídicas: do “dever-ser” não se transita livremente ao “ser”
2 A NORMA PRIMÁRIA SANCIONATÓRIA
2.1 A abstração lógica como instrumento eficiente para o estudo do Direito Positivo
2.2 A norma jurídica em sentido amplo e em sentido estrito
2.3 Norma jurídica completa: norma primária e norma secundária
2.3.1 A resposta à pergunta: “existe norma jurídica sem sanção?”
2.4. A norma primária tributária e a norma primária sancionatória
2.5. A estrutura lógica da norma primária sancionatória e seus conteúdos de significação
2.5.1 O fato jurídico “infração tributária” como núcleo do antecedente normativo
2.5.2 A “sanção” como consequente normativo
2.6 Síntese meramente didática das normas jurídicas
3 A SANÇÃO NO DIREITO TRIBUTÁRIO
3.1 Noções do termo sanção
3.2 A sanção na Teoria Geral do Direito
3.2.1 A sanção em Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria)
3.2.2 A sanção em Hans Kelsen
3.3.3 A sanção em Norberto Bobbio
3.3.4 A sanção em Lourival Vilanova
3.3 A sanção no Direito Tributário
3.3.1 A natureza jurídica da sanção tributária
3.3.2 Distinção entre sanção e tributo
3.3.3 Análise da sanção tributária no plano sintático-semântico
3.3.4 A sanção em nível geral e abstrato
3.3.5 A teleologia das sanções tributárias: análise no plano pragmático
3.4. A graduação das sanções no Direito Tributário e a responsabilidade por infrações prevista no art. 136 do Código Tributário Nacional
3.4.1. Fundamentos em favor da teoria da responsabilidade por infrações objetiva, estatuída como regra geral no art. 136 do CTN
3.4.2. A objetividade na constatação da infração e temperamentos na cominação da sanção
4 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E AS SANÇÕES NO DIREITO TRIBUTÁRIO
4.1 O sistema do Direito Positivo e as normas jurídicas que demarcam princípios
4.1.1 Princípio: enfoque sintático
4.1.2 Princípio: amplitude semântica do vocábulo – norma jurídica de alta carga axiológica, como valor e como limite objetivo
4.2 Os sobreprincípios no sistema constitucional brasileiro
4.3 Aplicação: entre regras e princípios
4.4 Os princípios constitucionais: limitações ao poder sancionador tributário
4.5 A permeabilidade de princípios gerais da repressão e de princípios tributários específicos: limites dessa comunicabilidade
4.6 O sobreprincípio da segurança jurídica
4.6.1 A observância dos princípios da legalidade e da tipicidade no desenho da norma primária sancionatória e na constituição do fato jurídico infracional
4.6.1.1 As medidas provisórias e os atos regulamentares como instrumentos normativos inaptos para a tipificação de infrações e imposição de penalidades
4.6.2 O princípio da irretroatividade
4.6.2.1 A retroatividade benéfica: exceção ao postulado da irretroatividade – Artigo 106 do Código Tributário Nacional
4.7 Os sobreprincípios da isonomia (igualdade) e da justiça
4.7.1 A individualização das “penas” e a equidade para a efetiva garantia do tratamento justo e isonômico na imposição das sanções tributárias
4.7.2 O princípio da capacidade contributiva
4.8 O princípio do devido processo legal
4.8.1 A ampla defesa e o contraditório: a projeção adjetiva do devido processo legal
4.8.2 O princípio da proporcionalidade: a projeção substantiva do devido processo legal
4.9 O princípio da vedação ao confisco enunciado no art. 150, IV, da CF e as multas tributárias
4.10 Os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo
5 CLASSIFICAÇÃO E ESPÉCIES DE SANÇÕES TRIBUTÁRIAS
5.1 Classificações, em espécies, da sanção tributária empreendidas pela doutrina
5.2 Classificações jurídicas: considerações necessárias
5.3 A classificação da sanção tributária em espécies segundo o caráter pecuniário: nossa proposta classificatória
5.4 As sanções não pecuniárias
5.4.1 As sanções restritivas de direitos e o exercício do poder de polícia pela Administração
5.4.2 A inconstitucionalidade das “sanções políticas” como instrumento para compelir o sujeito passivo ao pagamento do tributo
5.4.2.1 A caracterização das “sanções políticas”: uma construção jurisprudencial
5.4.2.2 O Supremo Tribunal Federal e o caso “American Virginia”: inovação no contorno semântico das sanções políticas
5.4.2.3 Algumas hipóteses de sanções políticas
5.4.3 Perdimento de bens
5.4.3.1 A aplicação da sanção de perdimento de bens ajustada à garantia do devido processo legal
5.4.3.2 Exame da sanção de perdimento de bens no plano legislativo e jurisprudencial
5.4.4 Apreensão de bens
5.4.5 A recusa de expedição de Certidão Negativa de Débito: limites e efeitos
5.4.5.1 A apresentação de CND como condição ao exercício de atos jurídicos
5.4.6 Regime especial de controle e fiscalização
5.5 As sanções pecuniárias
5.5.1 Breve distinção entre natureza indenizatória (ou reparadora) e sancionatória (ou punitiva ou repressiva) das prestações pecuniárias
5.5.2 A função repressiva da multa no Direito Tributário: a dicotomia equivocada entre multa de mora e multa punitiva
5.5.3 Multa de mora versus multa de ofício
5.5.3.1 Síntese analítica das regras-matrizes de incidência da multa de mora (RMIMM) e da incidência da multa de ofício (RMIMO)
5.5.4 Multa isolada
5.5.5 Multa qualificada e multa agravada
5.5.6 A função da base de cálculo no consequente das normas primárias que prescrevem sanções pecuniárias
5.5.6.1 A dimensão econômica do fato jurídico tributário a título de base de cálculo da sanção pecuniária
5.5.7 A graduação das sanções pecuniárias formais
5.5.8 Casos concretos na imposição de multas no Direito Tributário
5.5.8.1 As multas isoladas de decorrentes de compensação não homologada e ressarcimento indevido
5.5.8.2 A aplicação concomitante da multa isolada por falta de recolhimento das estimativas mensais com a multa de ofício, exigida pela ausência de pagamento do IRPJ e da CSLL apurados no final do ano-calendário
5.5.8.3 A multa isolada aplicada por descumprimento de deveres instrumentais: matéria com repercussão geral reconhecida pelo STF
5.5.9 Juros de mora e correção monetária
5.5.9.1 O não pagamento da multa de ofício como hipótese de incidência dos juros de mora e a impossibilidade de anatocismo na cobrança de dívidas tributárias
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS