Prefácio: A teoria da regra-matriz de incidência tributária adquire praticidade enorme quando projetada no plano concreto das relações intersubjetivas. O conhecimento avança de maneira retilínea e uniforme, produzindo proposições de excelente qualidade científica, ao mesmo tempo em que elucida questões difíceis, encobertas pela névoa densa que a linguagem dos plexos normativos costuma implantar. Sua utilização está disseminada, pois há mais de uma centena de textos publicados com o emprego da metodologia a que me refiro.
Penso ser essa uma das razões que me fazem ver, com entusiasmo, o trabalho que o Prof. Argos Campos Ribeiro Simões oferece à edição, ao expor aspectos jurídicos, teórico-práticos, do ICMS, nas operações relacionadas à aquisição de bens e mercadorias regularmente importadas. Trata-se de sua dissertação de mestrado, sustentada com brilho e calorosamente aprovada pela banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sobre ser atualíssimo, o tema é batido de controvérsias, rendendo campo a discussões em todos os níveis de linguagem.
Com efeito, a Constituição de 1988, em sua forma original, autorizava a incidência do imposto, na modalidade ICMS-importação, sobre a “entrada de mercadoria importada do exterior, ainda quando se tratar de bem destinado ao consumo ou ativo fixo do estabelecimento”, o que levou o Supremo Tribunal Federal a concluir que estavam excluídas as importações realizadas por pessoas físicas ou jurídicas não contribuintes do ICMS. A Corte Maior considerou como requisitos para a incidência do gravame sobre a importação: (i) a existência de importação de mercadorias e não de meros bens; e (ii) ser o importador estabelecimento comercial. Isso sem falar na circulação jurídica de mercadoria, que se perfaz com a transferência de titularidade do bem, imprescindível à exigência do imposto estadual.
A Emenda Constitucional nº 33/2001, pretendendo alterar esse quadro, referiu-se, expressamente, à entrada de “bem ou mercadoria” realizada por “pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto.” Aludiu, ainda, ao “domicílio ou estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviço”.
A despeito da modificação ter ocorrido em 2001, portanto há mais de dez anos, ainda são numerosas as divergências administrativas e judiciais sobre o assunto. Daí o empenho do Autor em descer às minúcias terminológicas empregadas pelo Texto Constitucional, cotejando-as com o teor da vigente Lei Complementar (LC 87/96) e, bem assim, com as disposições ordinárias e as práticas da Administração.
Utiliza-se, para tanto, do esquema lógico-sintático da regra-matriz de incidência tributária, segregando os critérios para identificação do acontecimento susceptível de gerar tributação, bem como o respectivo laço obrigacional que, simultaneamente, instala-se. Tudo para concluir que, em verdade, estamos diante de ICMS incidente sobre uma espécie de “operações relativas à circulação de mercadorias”, exigindo, por conseguinte, que se tenha a circulação jurídica do bem ou mercadoria importada.
Dentre tantas outras decorrências dessa delimitação constitucional, adveio, recentemente, pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, confirmando a linha de raciocínio adotada pelo Autor, no sentido de ser descabida a exigência do ICMS quando da entrada de bens no território brasileiro mediante operações de leasing, por inexistir, nessa modalidade de negócio, a transferência da titularidade do objeto (RE 540.829, com repercussão geral).
Sobre o assunto, tenho manifestado que o modelo da regra-matriz de incidência apresenta-se como fórmula simplificadora, reduzindo as dificuldades do feixe de enunciados que constituem a figura impositiva. Por isso mesmo, não pode esgotar as especulações que a leitura do texto suscita. É oportuno mencionar que a norma-padrão desse tributo tem por conteúdo “realizar operações relativas à circulação de mercadorias”, segundo a estipulação constitucional, desdobrando-se em modalidades diversas para atingir tanto (i) aquelas realizadas internamente, dentro do Estado, como (ii) as interestaduais e as (iii) de importação. Todas elas tendo por núcleo tributável uma operação jurídica relativa a mercadorias, anotando-se que o campo semântico desta última palavra foi acrescido pela EC nº 33/2001, alcançando, agora, as operações jurídicas relativas a bens e mercadorias.
Feitos esses esclarecimentos, necessário se faz chamar a atenção para a circunstância de que essa fórmula simplificadora da regra-matriz de incidência tributária, com divisão em critérios, atende a anseios analíticos, imprescindíveis para o conhecimento do objeto. A despeito disso, hipótese e o correspondente fato jurídico tributário, assim como o liame obrigacional prescrito só podem ser compreendidos se considerada a integridade conceptual normativa. A previsão hipotética da regra-matriz de incidência relaciona as notas que o acontecimento há de possuir para ser considerado fato jurídico: ausente qualquer delas, o fato não se opera.
Como consequência dessa forma de pensar, tem-se a impossibilidade de considerar o critério material dissociado do aspecto temporal e do espacial. Algo é tido por fato jurídico tributário, desencadeando os correspondentes efeitos de direito, se, e somente se, aperfeiçoar-se a totalidade dos seus elementos compositivos.
O mesmo pode dizer-se da relação entre a hipótese e o consequente tributário. Exemplificando, se o critério material do ICMS-importação consiste em realizar operações de importação de bens ou mercadorias, sujeito passivo será a pessoa que praticar referida conduta, quer dizer, o importador. Ainda, tudo isso reflete diretamente na determinação do sujeito ativo, conforme é possível depreender-se da seguinte circunstância: (i) o ICMS incide, sempre, sobre “operações”, in casu, sobre operações de importação de bens ou mercadorias; (ii) então, o Estado autorizado a exigir o pagamento do imposto é aquele onde se realizar a operação jurídica, isto é, a pessoa política em que estiver localizado o estabelecimento importador, partícipe da relação negocial e destinatário jurídico do bem.
Trabalho analítico de tal porte leva o intérprete a aprofundar seus estudos, auxiliando, sensivelmente, o deslinde de dúvidas sobre o conteúdo dos textos prescritivos, mediante pensamentos e considerações entretecidas no conhecimento profundo. E é empregando com destreza esse instrumento teórico, mediante o exame minucioso da regra-matriz do ICMS-importação, que Argos Campos Ribeiro Simões produz um discurso retoricamente eficaz para demonstrar a especificidade da incidência, pondo em movimento sua condição de auditor fiscal da Fazenda do Estado de São Paulo, além dos ensinamentos colhidos no Tribunal de Impostos e Taxas, bem como da coordenação de sucessivos cursos na Escola Fazendária, para não falar das excelentes aulas magnas que tem ministrado nas várias unidades do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Trata-se de uma vivência considerável, principalmente se atinarmos à circunstância de que, toda ela, está voltada ao estudo do ICMS, imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, cuja relevância pode ser evidenciada logo no primeiro exame do Texto Maior, tendo em vista o caráter nacional que foi conferido a esse tributo, pedindo ao exegeta uma interpretação que mantenha as proporções inteiras do sistema do direito positivo.
Explorar as questões afetas à regra-matriz do ICMS-Importação, propondo construções de sentido para os termos empregados pelo constituinte, figura como expressiva contribuição do Autor à Ciência do Direito, sendo de grande utilidade para todos que operam com as normas vigentes. Eis um dos muitos motivos pelos quais recomendo esta obra, não sem antes transmitir meus cumprimentos à Editora Noeses que, com sua publicação, torna-a acessível aos interessados no assunto.
São Paulo, 06 de novembro de 2014
Paulo de Barros Carvalho
Professor Emérito e Titular da PUC/SP e da USP
INTRODUÇÃO
Esta obra apresenta visões jurídicas teórico-práticas do imposto de competência estadual, ICMS, nas suas operações relacionadas à aquisição de bens e mercadorias regularmente importados (o ICMS-importação).
A diversidade doutrinária e jurisprudencial de entendimentos sobre questões relacionadas ao ICMS-importação, em face das constantes alterações na legislação ocorridas desde o surgimento da exação estadual até os dias atuais, carece de análise metódica.
A importância da análise do tema por meio do método preconizado por Paulo de Barros Carvalho, e por nós adotado neste livro, está no rigor da preservação das premissas, como forma de dar credibilidade às conclusões obtidas.
Nesse sentido, temos duplo objetivo: (i) construir fundamentos teóricos restritos às necessidades interpretativas do contexto normativo do ICMS-importação e (ii) construir algumas Regras-Matrizes de Incidência Tributária possíveis do ICMS-importação em conjunto com a sua aplicação em algumas situações jurídicas relevantes no cenário tributário ligado ao imposto, como forma de demonstrar a eficácia dos fundamentos e do método de análise.
Nossa perspectiva cognoscente está alicerçada na visão doutrinária apresentada por Paulo de Barros Carvalho, discutindo (para nós, recriando) o mundo jurídico do ICMS-importação sob a ótica do constructivismo lógico-semântico. O método foi o de construção de Regras-Matrizes de Incidência Tributária do ICMS e do ICMS-importação. Assim, reconstruímos linguisticamente o ICMS-importação.
Este livro está organizado da seguinte forma: iniciamos o estudo com uma visita panorâmica aos conceitos da teoria que admite o Direito como linguagem; na sequência, iniciamos o processo de positivação analisando o papel da lei complementar no cenário instituidor do ICMS.
A seguir, construímos a Regra-Matriz de Incidência Tributária do ICMS-operação relativa à circulação de mercadorias e fazemos uma construção evolutivo-semântica da materialidade do ICMS-importação, desde seu surgimento até os dias atuais, como ingrediente metódico interpretativo, definindo o modus operandi de nosso legislador tributário.
Depois, abordamos conceitos envolvendo a não-cumulatividade do ICMS, tanto na realização de operações relativas à circulação de mercadorias como na importação, tendo em vista a utilização de seus fundamentos na solução dos casos que apresentamos.
Finalmente, terminamos com a construção dos critérios da Regra-Matriz de Incidência Tributária do ICMS-importação por meio de discussão de casos práticos.