Prefácio do Min. Teori Albino Zavascki: Uma das mais fundamentais características do Direito é a de que ele constitui uma ciência prática destinada a promover coesão social e, por isso mesmo, com presença necessária no cotidiano das pessoas. Essa sua faceta propiciou, ao longo da história, o surgimento de certos enunciados, não raro de fácil compreensão popular, mas com aptidão para sintetizar razões jurídicas com elevado poder de expressividade, que conseguem atravessar os tempos, preservando sua carga suasória para muito além dos séculos, dos sistemas de governo e das diferenças culturais. São diretrizes que, a despeito do sintetismo de sua formulação escrita, possuem alcance quase universal, projetando-se sobre os mais variados ordenamentos, como normas, valores ou orientações hermenêuticas. Enquadram-se naquelas referências jurídicas as quais a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro identifica como “princípios gerais de direito” (art. 4º do Decreto-lei 4.657/42).
A vedação ao bis in idem é certamente uma dessas diretrizes, ocupando posição de destaque na antologia jurídica ocidental. O aforismo é de crucial relevância para os Estados Democráticos de Direito em geral, sobretudo no contexto do desempenho das funções de controle social, como o do ius puniendi, pois funciona como um verdadeiro moderador de cidadania dessas atividades, impedindo que sejam exercidas de modo excessivo ou aflitivo à paz social. Sua incidência no ordenamento brasileiro é inquestionável. Embora não esteja positivado na Constituição Federal de 1988 numa formulação linguística que se possa dizer genérica, o ne bis in idem ou non bis in idem traduz um ideário que está subjacente a diversos preceitos do texto constitucional e do ordenamento nacional.
Numa acepção bastante simplista, a vedação ao bis in idem repudia a possibilidade de que um mesmo fato, normalmente ilícito, venha a ser tomado, simultânea ou sucessivamente, como objeto de diferentes juízos estatais de censura capazes de culminar na imposição de mais de uma sanção contra o infrator. Sob o influxo dessa noção, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, internalizado no direito nacional pelo Decreto Presidencial 592, de 6 de julho de 1992, enuncia, em seu art. 14, n. 7, que “ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infração da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país”. Eis, portanto, uma concepção jurídica de conteúdo invariavelmente humanista, postada a serviço da proteção da dignidade humana frente ao arbítrio estatal.
Por mais vetusta que seja a sua origem, essa conhecido princípio vem ampliando seu domínio normativo nos diferentes planos do direito, percorrendo uma trajetória de dispersão que, se inicialmente fincou raízes no âmbito do direito penal e sancionatório em geral, hoje expande sua influência para muitas outras raias. A despeito, porém, da transcendentalidade que atualmente experimenta e da larga presença do ne bis in idem nas decisões judiciais, o cenário jurídico nacional ressente-se de uma sensível lacuna dogmática a respeito do tema. Ressalvada a literatura produzida nos lindes do direito penal, pouquíssimos são os trabalhos jurídicos brasileiros que lhe prestam a devida reverência científica, o que tem contribuído para que a sua aplicação se mostre muitas vezes desvestida de critérios seguros.
A presente obra chega, portanto, com o honroso papel de contribuir para a superação desse hiato. Em boa hora, o jovem e talentoso advogado Fábio Brun Goldschmidt, em cuja formação acadêmica tive a honra de poder auxiliar, oferece à comunidade jurídica nacional uma análise extremamente lúcida a respeito da noção jurídica de proibição do bis, formulada a partir das experiências sorvidas durante programa de doutorado por ele cursado junto à tradicional Universidade de Salamanca, na Espanha, e do tirocínio acumulado em incursões científicas e profissionais na área do Direito Tributário.
Essas qualificações pessoais repercutiram significativamente no formato do trabalho ora apresentado, composto basicamente por duas grandes linhas de investigação. A primeira delas perscruta o conceito, a estrutura e o alcance desse postulado a partir de perspectivas, quase incomuns no plano doutrinário, do direito tributário material e do direito processual, campos pelos quais o autor transita com percuciência notável. O segundo fio condutor da obra examina o enunciado do ne bis in idem no direito sancionador tributário, conduzindo, à luz do direito comparado, a uma proposta de aplicação mais ampla do postulado no direito brasileiro.
Antes, porém, de incursionar por esses caminhos, o autor cuidou de situar a máxima da vedação ao bis in idem no plano histórico, registrando suas oscilações segundo os diversos sistemas jurídicos ocidentais. Nessa análise, desenvolveu um competente relato sobre o evolver do conteúdo normativo da proibição, dando a ver que, após surgir como mera vedação ao cúmulo de sanções, foi depois assumindo novas eficácias, passando a repelir também a cumulação de ações referentes aos mesmos fatos (eficácia preclusiva) e a se impor como verdadeiro lastro de coerência interna dos sistemas jurídicos modernos (eficácia informativa), em que funciona ora como regra, ora como princípio e ora como vetor hermenêutico. O capítulo de abertura do livro contém ainda uma meticulosa recapitulação dos principais julgados do Supremo Tribunal Federal sobre a proibição ao bis in idem, com um olhar especial para o Direito Tributário, área de concentração dos estudos do autor, em que se demonstra como a jurisprudência brasileira tem lidado com o tema.
Na segunda parte do estudo, sem dúvida alguma a mais original, o autor examina a incidência do ne bis in idem no campo dos atos lícitos. Em sua seção inaugural, desponta um ensaio absolutamente rico a respeito da assimilação do fenômeno da coincidência tributária pelo contexto normativo do sistema tributário nacional. Com grande desenvoltura, o autor revisita os fundamentos do federalismo brasileiro para mostrar como o sistema rígido de distribuição de competências impositivas adotado pela Constituição Federal, que não admite a outorga implícita do poder de instituição de tributos, limita as possibilidades de múltiplas incidências apenas às hipóteses de autorização expressa.
Ainda nessa seção, são traçadas considerações gerais a respeito da estrutura do postulado da vedação do bis in idem que fomentam a análise individualizada de várias das regras constitucionais expressas. À luz dessas propostas teóricas, o autor apresenta interpretações para diversas questões polêmicas do direito tributário, como, v.g., a da inclusão do valor do tributo na sua própria base de cálculo.
Na seção seguinte, são exploradas situações específicas de direito processual em que o postulado do ne bis in idem imbrica-se com conceitos constitucionais de grande magnitude, tais como a coisa julgada, a inafastabilidade da jurisdição e o devido processo legal. Aqui, a vedação ao bis in idem é exaltada como argumento valioso para a superação de controvérsias clássicas a respeito da atuação do Poder Judiciário, como a (im)possibilidade de que a Administração busque socorro jurisdicional para reverter decisão proferida em processo administrativo fiscal que lhe tenha sido desfavorável e a (in)viabilidade de tramitação simultânea de processos administrativos e judiciais.
O capítulo derradeiro examina o papel do ne bis in idem no direito sancionador tributário. Servindo-se das bases dogmáticas encampadas por diversas decisões da Corte Constitucional espanhola e dos tribunais da União Europeia – cuja jurisprudência, de um modo geral, é refratária à possibilidade de que a mesma pessoa venha a ser duplamente responsabilizada, nas instâncias penal e administrativa, por um mesmo ato ilícito -, o autor desfiou críticas contundentes a compreensões ainda plenamente arraigadas na tradição jurídica brasileira, tais como (e sobretudo) o dogma da independência das esferas de responsabilização, que, por aqui, ainda é rotineiramente invocado para legitimar a superposição de processos e de sanções como resposta aceitável para a censura de uma única infração.
Partindo da indistinção ontológica entre grande parte dos ilícitos penais e administrativos – protetores que são de bens jurídicos muitas vezes coincidentes – e do patrocínio de uma leitura material da vedação do bis in idem – que enxerga a ação estatal punitiva como uma só -, o estudo defende que a comunicação entre as esferas de responsabilização penal e administrativa é um problema que deveria merecer a máxima atenção do aplicador da norma. Como a proibição do bis in idem retira sua fundamentação de diversos princípios enunciados pela Constituição Federal (a segurança jurídica, a culpabilidade, a proporcionalidade, a legalidade e a tipicidade), figurando como um verdadeiro padrão objetivo de justiça balizador da aplicação das censuras prometidas pela lei brasileira, o autor sustenta que a comunicação entre as instâncias penal e administrativo-tributária poderia ser viabilizada pelo socorro a soluções hermenêuticas como as que disciplinam o concurso de normas no âmbito do nosso direito penal, tais como a especialidade, a subsidiariedade, a consunção e alternatividade, além de outras menos vistas por aqui, mas chanceladas pelo direito comparado, como as técnicas de exasperação, absorção, desconto e cumul planfonné.
Embora se possa eventualmente discordar de algumas das formulações ou propostas apresentadas nesta obra, isso de modo algum desmerece o relevante valor científico que lhes conferiu o autor, sobretudo porque enaltece o ne bis in idem como instrumento de garantia dos cidadãos, de modo especial na sua condição de contribuintes.
Como os leitores haverão de comprovar, o resultado final das pesquisas de Fábio Brun Goldschmidt foi vertido numa obra que impressiona não apenas pelo seu ineditismo, como também pela abrangência e profundidade com que versou o tema. Ao reunir, num único volume, uma análise do papel do ne bis in idem no sistema jurídico brasileiro capaz de integrar tanto a fenomenologia dos atos lícitos (direito tributário material e processual) como os ilícitos (direito sancionador tributário), o autor cumpriu, com grande êxito teórico, uma empreitada acadêmica de alta complexidade, que revelou, sob uma perspectiva singular, como esse preceito é caro à realização da dignidade humana e, consequentemente, à afirmação das garantias do contribuinte. É por isso que se pode atestar, sem risco de erro, que se tem em mãos uma obra que haverá de ocupar um espaço de relevo na literatura jurídica.
Teori Albino Zavascki
Ministro do Supremo Tribunal Federal
Prefácio de Roque A. Carrazza: 1. Sinto-me sobremodo honrado em prefaciar esta obra de autoria do Professor Fabio Brun Goldschmidt, jurista que se destaca entre seus pares, pela extraordinária capacidade de tratar, de modo criativo e original, os assuntos sobre os quais volta suas atenções.
Como não ignoro que a principal função dos prefácios é apresentar aos leitores o texto principal, dou-me pressa em escrever que a presente obra tem o caráter da essencialidade, ou seja, a virtude de ser modelar dentro de seu gênero específico.
Deveras, esta TEORIA DA PROIBIÇÃO DE “BIS IN IDEM” NO DIREITO TRIBUTÁRIO E SANCIONADOR TRIBUTÁRIO congrega, em alto grau, sabedoria jurídica, habilidade redacional e fôlego inovador. Que eu saiba, inexiste, a respeito, na doutrina pátria, trabalho mais abrangente e completo.
Por isso, rendo, desde já, minhas homenagens ao autor, que sempre mais me surpreende pela maturidade e solidez de seu pensamento, que o levam a solucionar, de modo adequado, os problemas jurídicos que habilmente levanta.
2. Tais predicados derivam, sem dúvida, da biografia do Professor Fábio Brun Goldschmidt, que muito o recomenda.
Nascido em Porto Alegre (RS), em 1975, ali cursou o secundário, no Colégio Anchieta e, a Faculdade de Direito, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde colou grau, com excelentes notas, em 1998.
Logo em seguida, trabalhou, durante seis anos, com o jurisconsulto e advogado Paulo Brossard, que acabara de se aposentar do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Com este notável jurista solidificou seus conhecimentos em Direito Constitucional e Administrativo.
Ato contínuo, foi convidado a criar e desenvolver a área de Direito Tributário, do Escritório Andrade Maia Advogados, atualmente um dos maiores do Rio Grande do Sul, em Direito Empresarial. Tanto é assim, que conta com mais de duzentos integrantes, sendo sua área tributária nacionalmente conhecida e reconhecida, máxime em matéria contenciosa.
Pelos seus méritos, Fabio Goldschmidt hoje é sócio deste conceituado escritório.
2.1. Anoto, ainda, que, apesar de suas absorventes ocupações advocatícias, o autor ainda encontra tempo para exercer o cargo de Conselheiro Titular do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda), onde se tem destacado pela independência, pela cientificidade de seus votos e pelo senso de justiça.
É, igualmente, membro fundador do IPT (Instituto de Pesquisas Tributárias) e integra o IET (Instituto de Estudos Tributários do Rio Grande do Sul).
2.2. Destaco, outrossim, que o autor tem atuado vitoriosamente em relevantes leading cases, junto ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça. Sirva-nos de exemplo, o famoso caso do creditamento de IPI nos insumos sujeitos à alíquota zero, em que teve o mérito de introduzir, pela primeira vez, em matéria tributária, no STF, o conceito de modulação de efeitos no controle difuso de constitucionalidade, técnica que criou um verdadeiro divisor de águas no Direito Tributário brasileiro e deu ensejo ao surgimento de importantes obras e precedentes, a respeito.
2.3. Em sua carreira acadêmica, Fábio Goldschmidt obteve, sucessivamente, os graus de Especialista em Gestão Empresarial, pela Fundação Getúlio Vargas, de Mestre em Direito Tributário, pela Universidade de São Paulo e de Doutor em Direitos e Garantias do Contribuinte, pela Universidade de Salamanca (Espanha).
O autor foi convidado, entre outras instituições, a lecionar no Programa de Pós-Graduação em Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no Instituto de Direito Público do Distrito Federal. Além disso, participa regularmente, como palestrante, de simpósios, seminários e congressos jurídicos, sempre difundindo seus vastos conhecimentos.
2.4. Já deu à publicidade o livro O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário, além de haver participado, como co-autor, de outros onze. Também tem publicados diversos artigos, nas mais importantes revistas jurídicas do País.
Acerca do mencionado O Princípio do Não-Confisco no Direito Tributário – que li, com grande proveito intelectual – peço vênia para registrar que se trata de uma adaptação de sua dissertação de mestrado, que, aprovada com distinção, foi escolhida, pelo eminente Professor Paulo de Barros Carvalho, para representar, como obra de excelência acadêmica, o Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de São Paulo (USP), perante o Ministério da Educação e Cultura (MEC).
Tal livro, que levou o autor a ser homenageado pela Câmara Municipal de São Paulo, com votos de júbilo e congratulações, é uma obra de referência, tanto que teve vários de seus conceitos (particularmente a perspectiva dinâmica do princípio do não-confisco) encampados em recente concurso para provimento do cargo de Auditor da Receita Federal.
3. Pois bem. Prosseguindo em sua trajetória acadêmica, o Professor Fabio Brun Goldschmidt oferece, agora, ao público leitor, estudo de maior fôlego e ambição, acerca do ne bis in idem no Direito Tributário e sancionador tributário.
Este trabalho corresponde à sua tese de doutorado, defendida na centenária Universidade de Salamanca (Espanha), onde, para orgulho do mundo jurídico brasileiro, foi aprovada com a nota máxima (sobressaliente cum laude) e indicada para o prêmio extraordinário de excelência acadêmica.
3.1. Tenho para mim, que resumir uma tese acadêmica da envergadura da que ora tenho em mãos, é tarefa espinhosa, comparável ao ato de escalar uma alta montanha. Para não fracassar, é preciso, a cada instante, manter a visão do cume a atingir, lutando contra a natural tendência de fazer afirmações gratuitas e de incidir em lugares comuns.
Com esta preocupação, sinto-me no dever de consignar que a obra me impressionou, não só pela profundidade de seus conceitos, como pelo modo pelo qual foi construída. De fato, nela não encontrei nem ociosas repetições, nem verbosidade difusa, mas, pelo contrário, pensamentos inovadores, de alguém familiarizado com a maior das aventuras humanas: a aventura de pensar.
Positivamente, Fabio Goldschmidt conseguiu, neste livro, fugir à compulsão de percorrer sempre os mesmos caminhos e de dar simples informações.
3.2. Por outro lado, segundo me foi dado notar, esta é a primeira monografia brasileira que sistematizou a matéria de seu viés material tributário, sancionador tributário e processual tributário, propondo diversas formas de aplicação do aforismo non bis in idem.
Com efeito, no campo sancionador, o livro traça as bases teóricas para impedir a dupla punição em suas mais diversas formas e, com isso, inova a doutrina, ao estabelecer um amplo rol de possibilidades de comunicação entre o Direito Penal e o Direito Tributário Sancionador, apresentando conceitos e ferramental antes restritos ao âmbito criminal.
Já, no campo material tributário, a obra parte da análise crítica da proibição de bis in idem na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça e tem o mérito de defender o emprego desta vedação como um vetor hermenêutico, conducente ao rechaço da superposição impositiva, tanto em face do silêncio, quanto da dúvida (ou seja, sempre que o bis não esteja expressa e inequivocamente previsto na Constituição Federal).
3.3. Sempre a propósito, merece ser ressaltado que, nesta obra, o Professor Fabio Brun Goldschmidt não se esgueirou dos temas mais difíceis, fenômeno tão frequente nos meios acadêmicos. Antes, produziu um livro de leitura enriquecedora e estimulante, impregnado da salutar ousadia própria dos altos estudos.
O estilo leve que permeia o ensaio não se choca com a seriedade de fundo do assunto e convida o leitor a refletir por conta própria, desmascarando chavões e afastando tabus intelectuais que costumam por travas dogmáticas à inteligência. Cada uma de suas páginas revela a experiência do jurista, como profissional preocupado com a resolução dos problemas concretos que suscita.
3.4. É também de meu agrado ressaltar que, embora de sólida concepção teórica, este livro tem inegável conteúdo prático. Noutros falares, preocupa-se em resolver problemas reais, vale dizer, em construir uma teoria que racionalize o processo de aplicação do direito, restabelecendo um diálogo, interrompido por Kelsen e Hart, entre a teoria e a prática jurídica.
O que, diga-se de passagem, é elogiável, pois o pensar não se separa originariamente do agir. Deveras, o pensar não passa de um agir em sentido especialmente elevado, não estando separado da ação por nenhum abismo insuperável.
3.5. Em suma, o leitor tem diante de si uma percuciente análise do direito sancionador tributário, em que o autor nos convoca a pensar com ele e, eventualmente, até a pensar contra ele. Afinal, nunca se deve perder de vista que, do entrechoque de ideias, costuma faiscar a verdade.
4. Neste ponto de minha exposição, sinto-me obrigado a admitir que meu prefácio, longe de ser exaustivo, cuidou apenas de alguns temas versados pelo autor. De qualquer modo, penso haver salientado que a obra há de deixar marcas importantes na cultura jurídico-tributária nacional.
5. Por todos estes motivos e, sobretudo, pela boa qualidade do texto, recomendo-o a alunos, advogados, juízes de direito, promotores de justiça, procuradores, agentes fiscais e outros profissionais, que fazem do Direito Tributário e do Direito Tributário Sancionador os centros de suas ocupações e preocupações.
6. Enfim, o Professor Fabio Brun Goldschmidt é merecedor de todas as loas, por haver logrado, nesta obra candente e original, a proeza de transformar um assunto dificílimo, numa leitura instigante, agradável e, sobretudo, esclarecedora.
Este é o juízo que, com muita satisfação, desejo partilhar com os leitores.
São Paulo (SP), 25 de julho de 2014.
Roque Antonio Carrazza
Professor Titular da Cadeira de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
INTRODUÇÃO
A presente obra nasceu da constatação de que, na doutrina do Direito Tributário e Sancionador Tributário brasileiros, a máxima ne bis in idem vem sendo praticamente ignorada. Até hoje, não encontramos uma única obra monográfica sobre o assunto. Na imensa maioria dos Cursos de Direito Tributário, a proibição de bis in idem sequer é referida e, nos poucos artigos que fazem referência à mesma (em qualquer contexto), o tema é tratado sem maior profundidade. Na jurisprudência brasileira, embora a menção ao non bis in idem seja recorrente (com referências ao mesmo em julgados do STF no contexto do Direito Civil, Trabalhista, Comercial, Penal, Tributário, Administrativo, entre outros), o aforismo é sempre abordado sem preocupação científica de definição de conceito, estrutura ou alcance e assim quase nenhum auxílio se oferece à demarcação das fronteiras cognitivas da máxima. Mesmo no Direito Penal brasileiro, no qual há inúmeros acórdãos sobre o assunto, o número de obras doutrinárias é baixíssimo, e boa parte dos Cursos de Direito Penal ignora o axioma por completo.
Chegando à Espanha para a realização de nosso Doutorado junto à Universidade de Salamanca, ficamos surpresos ao ver que o tema aflorava de maneira intensa, tendo dado margem a importantes contribuições doutrinárias no âmbito Penal e Sancionador Administrativo, tanto em monografias, quanto em artigos, ao longo da última década. Em grande parte, tal se deve às decisões do Tribunal Constitucional empregando a proibição de bis in idem no controle do jus puniendi estatal, ponderando ou impedindo a aplicação de uma segunda sanção frente a um mesmo fato. Em especial, chamou-nos atenção o julgado da Corte concluindo – o que no Brasil seria, no cenário jurídico atual, absolutamente impensável – que a imposição de uma determinada punição no âmbito do Direito Administrativo Sancionador pode impedir o juiz penal de aplicar a pena prevista em lei para o mesmo fato, tendo em vista que o acusado já recebeu sanção prévia e não há espaço para a imposição de uma segunda punição.
Independentemente do acerto dessa decisão, ela certamente conduz a proibição de bis in idem a um novo e mais elevado patamar, desafiando o estudioso do Direito ao aprofundamento de tão interessante tema. Isso porque, no contexto hodierno do Direito Brasileiro, é senso comum que a aplicação de pena pelo juiz penal não sofre qualquer tipo de restrição em face de prévia aplicação de outra espécie de sanção no âmbito Administrativo. E, certamente, soa incrivelmente estranho aos olhos do operador do Direito no Brasil a possibilidade de que tais esferas, Administrativa e Judicial, possam comunicar-se, em especial quando essa comunicação implica redução ou mesmo completa anulação dos poderes do juiz penal, que há de se conformar com a precedência da punição aplicada no âmbito da Administração.
O trabalho que adiante pretendemos desenvolver, no entanto, não versa sobre Direito Penal, mas sim sobre Direito Tributário e Sancionador Tributário. Interessa-nos, contudo, beber das incríveis conquistas da doutrina e jurisprudência espanholas no desenvolvimento da proibição de bis in idem no âmbito Penal e Administrativo Sancionador (em que, como veremos, os princípios penais são aplicáveis, com certos matizes), para aplicá-los à realidade brasileira e, assim, permitir que aqui também possa florescer o debate. Nosso trabalho não é, assim, de Direito Espanhol ou de Direito Internacional, senão que de Direito Brasileiro, pensado a partir da experiência colhida na Espanha – em especial – e na Europa – em geral. A jurisprudência e doutrina espanholas são empregadas como instrumentos para o desenvolvimento do Direito brasileiro, de modo a propiciar uma nova visão que coloque à prova muitos daqueles “fundamentos óbvios” a que sempre se referiu o saudoso Alfredo Augusto Becker; fundamentos “que costumam ser aceitos como demasiado óbvios para merecerem a análise.”
O estudo realizado, a rigor, engloba duas diferentes teses: uma de Direito Sancionador Tributário e outra de Direito Tributário (material), com desenvolvimento independente, mas com um ponto de partida comum: a proibição de bis in idem. Assim, no primeiro capítulo nos dedicaremos à parte geral, de origem e evolução da proibição de bis in idem. No segundo capítulo, trataremos do tema no contexto do Direito material Tributário brasileiro, perquirindo sobre a existência e o eventual âmbito de aplicação da proibição de bis in idem no campo impositivo. E, no terceiro capítulo, nos dedicaremos à proibição de bis in idem no âmbito sancionador brasileiro, procurando tomar de empréstimo técnicas e princípios de Direito Penal capazes de outorgar maior eficácia à máxima em nosso ordenamento. Em ambos os capítulos, tributário e sancionador, examinaremos as dificuldades processuais que a aplicação da proibição de bis in idem pode envolver na prática.
Alguns nos indagarão a razão pela qual decidimos reunir, em um único trabalho, essas duas (ou mesmo três, considerado o direito processual) teses. E a resposta está no fato de que inexiste qualquer obra monográfica sobre a proibição de bis in idem no Direito Sancionador Tributário ou mesmo no Direito Tributário brasileiro, o que recomenda a realização de uma primeira abordagem abrangente do tema, apta a fornecer ao leitor uma compreensão geral do mesmo para, com isso, inspirar o desenvolvimento do postulado e o debate, a partir das premissas aqui lançadas e das dúvidas ou controvérsias delas decorrentes.
No capítulo atinente ao Direito tributário, veremos que – opostamente ao que ocorre no Direito Sancionador – a proibição de bis in idem não possui, na Espanha, o mesmo desenvolvimento que alcançou no Brasil, onde diversos julgados do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça recorrem ao aforismo ora para invalidar, ora para manter determinadas exigências tributárias. Ou seja, se por um lado na Espanha não se costuma cogitar da aplicação da proibição de bis in idem no Direito Tributário, na jurisprudência brasileira essa prática é frequente, a justificar a análise da mesma em busca de determinar os contornos da máxima nesta seara.
Não obstante tal prática jurisprudencial, iniciaremos tal capítulo indagando se, de fato, existe uma proibição geral de bis in idem no direito material tributário brasileiro e, existindo, em que circunstâncias ela é aplicável. Veremos que – independentemente da existência de uma proibição geral de bis in idem em matéria tributária – a máxima funciona como vetor hermenêutico na compreensão da delimitação da distribuição constitucional de competências, orientando o intérprete – forte nos princípios de política fiscal e nos valores a eles inerentes – ao rechaço da hermenêutica que conduza à legitimação da superposição de incidências sempre que esta não for inequivocamente almejada e imposta pelo poder constituinte. Finalmente, demonstraremos a existência de específicas proibições de bis in idem postas – ou pressupostas – na Carta brasileira para determinados tributos, procedendo à análise de cada um dos dispositivos constitucionais pertinentes.
Na segunda parte, por outro lado, o trabalho adotará premissas bastante distintas, já que aqui não se tratará mais de normas primárias prescritivas de conduta, senão que de normas secundárias, prescritivas de sanção. Não dirá com Direito Tributário propriamente dito, mas com Direito Administrativo Sancionador ou ainda com Direito Sancionador Tributário. Conforme preceitua o Código Tributário brasileiro, tributo e sanção são figuras conceitualmente antagônicas. Se tributo é a obrigação pecuniária prevista em lei que não constitua sanção de ato ilícito, sanção é justamente a punição consistente na imposição de obrigação (no caso em exame, via de regra pecuniária) decorrente da prática de ato ilícito. E, assim sendo, as matérias são reguladas por um arcabouço completamente distinto de princípios e normas, o que igualmente afeta o alcance e as perspectivas de aplicação da proibição de bis in idem.
A proibição de bis in idem no âmbito do Direito Penal – diferentemente do que ocorre no Direito Tributário – não encontra qualquer contestação, sendo matéria amplamente versada e universalmente aceita nesta seara, tanto que objeto de inúmeros Tratados, Declarações de Direito e Convenções internacionais. Em alguns países, como a Espanha, muitas das conquistas do Direito Penal em torno do tema já foram transpostas para o âmbito do Direito Administrativo Sancionador, a partir da constatação de inexistência de diferença ontológica entre o ilícito penal e o administrativo. Nossa intenção com a presente investigação é tentar suprir – a partir dos avanços doutrinários e jurisprudenciais espanhóis no ponto – a perigosa lacuna doutrinária e jurisprudencial ainda existente sobre o tema no Direito Tributário Sancionador brasileiro, delineando os requisitos para a incidência da proibição de bis in idem e detalhando as formas de se lhe emprestar eficácia. Nesse contexto, importante será verificarmos, também, os aspectos processuais afetos a essa análise, investigando situações em que a duplicidade de sanções venha acompanhada da duplicidade/multiplicidade simultânea ou sucessiva de processos, bem como da duplicidade/multiplicidade de atores sancionadores, dentro de um mesmo ou distinto Poder.
Infelizmente, o gigantismo da Administração Pública no Brasil, em especial no que concerne aos órgãos de fiscalização e normatização infralegal, vem causando um estado de hiper-repressão do indivíduo, sem que, paralelamente, disponibilizem-se efetivos meios de controle nos excessos muitas vezes incorridos tanto no punir determinados fatos (superposição de sanções), quanto no outorgar competências fiscalizatórias e repressivas (superposição de persecuções punitivas). Multas são agravadas e sobrepostas com bastante frequência, sempre sob o argumento de originarem-se de “distintos fundamentos” (legais) – ainda que decorrentes de um único e exclusivo fato; esferas de poder (federal, estaduais e municipais) sobrepõem-se no controle de determinados atos; e sanções de natureza não-pecuniária são impostas cumulativamente às pecuniárias sem qualquer espécie de regramento, controle de proporção ou verificação de conflito.
Nosso trabalho, assim, está voltado à outorga de maiores garantias ao contribuinte, tanto no que se refere à limitação à descoordenada imposição de sanções tributárias, conducente à insegurança e à desproporção, quanto no que se refere ao controle da instituição e cobrança dos tributos que não observe as interdições à superposição encontráveis na Constituição. Tudo a partir de uma melhor compreensão da proibição de bis in idem e de seus limites cognitivos.
É o que passamos a expor.