Com o texto que tenho a satisfação de prefaciar, Luciano Garcia Miguel oferece interessante e sugestivo acréscimo à doutrina brasileira sobre o ICMS, que tanto vem preocupando o meio jurídico nacional, em função de suas inevitáveis repercussões no complexo sistema de integração social, política e econômica do Estado brasileiro.
O descontrole das iniciativas e a sucessão de providências tomadas isoladamente pelas unidades federadas suscitaram uma “guerra fiscal” sem precedentes, cujos detrimentos ultrapassaram as mais ousadas previsões dos especialistas. Penso que ninguém, em sã consciência, imaginou até que ponto chegaria o desgaste de uma competição dessa ordem, demorada e extravagante, com expedientes despropositados e medidas esdrúxulas de retaliação, surgindo como algo que fosse avançando e produzindo efeitos perniciosos, sem que a vigilância dos órgãos superiores da atividade jurisdicional pudesse interferir, com eficácia, para manter a integridade daquilo que se chama de pacto federativo. A situação, porém, se agravou. A guerra fiscal prossegue, fazendo reaparecer agora as acirradas disputas em torno de propostas que, de qualquer forma, têm o condão de desagradar importantes setores de nossa combalida federação, desenhando outro tipo de desequilíbrio para solucionar impasse que continua grave e inalterado. Aquilo que poderia assumir foros positivos, estimulando competição sadia entre os Estados-membros para incrementar as respectivas receitas tributárias e fazendo desenvolver os instrumentos jurídico-administrativos de controle da legislação do ICMS, foi amplamente superado pela força avassaladora de um desrespeito mútuo instalado entre as pessoas políticas, clima de desentendimento nunca visto na conturbada história das instituições jurídico-fiscais de nosso país.
A federação brasileira está em crise! De há muito, a União, cujo nome inteiro é “União dos Estados Federados”, foi-se distanciando das unidades que a compõem, numa histórica campanha de fortalecimento econômico e político, rompendo o equilíbrio que se exige de uma federação onde as pessoas de direito constitucional hão de estar parificadas para manter-se a harmonia e o equilíbrio do modelo concebido. Tal movimento, exercido como uma força centrípeta, serviu para aumentar o poderio econômico e político do governo central, até transformar os vínculos de igualdade em laços de subordinação. A própria absorção pelo governo federal das dívidas dos Estados-membros com credores particulares, que a princípio pareceu expediente de auxílio às entidades estaduais, acabou representando um instrumento a mais para caracterizar a submissão econômica e política dessas últimas perante a União, de tal sorte que o modelo estrutural do país, assim como está, dista de ser o de uma federação, aproximando-se mais de um Estado unitário, como fora, aliás, até a instauração da República e o advento da Constituição de 1891. A descentralização do poder central abriu espaço à autonomia das antigas províncias. Nada obstante, há bom tempo, sempre que se tornou necessária uma providência no setor do relacionamento entre os entes políticos, o caminho adotado foi o da desconcentração, em que as atribuições e os misteres públicos são transferidos sem caráter político-legislativo e, portanto, sem autonomia. Ora, federação pressupõe descentralização e não desconcentração, de tal modo que uma análise realista e objetiva do Brasil contemporâneo aponta para um Estado de fisionomia unitária, conquanto o Estatuto Supremo mencione, enfaticamente, a adoção do modelo federativo. Mas a dependência econômica traz consigo a subordinação política, contingência que acarreta indisfarçável desnível no que concerne à participação das unidades “federadas” na formação da vontade nacional. A União, como pessoa de direito interno, indiferente às autonomias dos demais entes, impera de modo sobranceiro, não cumprindo sequer a missão de organizar as políticas de desenvolvimento regional, o que vem em prejuízo dos direitos e interesses dos Estados-membros e dos Municípios. Além disso, não se deu, na proporção adequada, o fortalecimento do Judiciário que é fator essencial para a manutenção do esquema federativo e, convenhamos, os dois outros poderes da República não atinaram ainda para aspecto tão relevante da missão jurisdicional que a Constituição proclama. Resultado: mesmo provocado para resolver os impasses criados com a guerra fiscal, o Supremo não tem conseguido obter, com eficácia, os resultados esperados pela sociedade.
Vê-se que a guerra fiscal é apenas um efeito do enorme desequilíbrio na articulação das instituições jurídicas do Brasil, nunca, um problema isolado, circunscrito a algumas causas facilmente diagnosticadas. Mas, torna-se difícil falar do ICMS sem aludir a esse fenômeno histórico tão presente e discutido nos dias de hoje. Algo, porém, pretendo repetir: o lado positivo dessa disputa vem estimulando os Estados no sentido de apurar seus instrumentos de ação econômica e administrativa, bem como aperfeiçoando os mecanismos de caráter jurídico, para acomodar as providências indispensáveis que o combate requer. E tal aprimoramento pressupõe pesquisa e análise detida das situações críticas, gerando textos normativos de alto nível técnico. Por isso mesmo creio ter-se desenvolvido um saudável esforço de conhecimento, com a produção de intensa e especializada jurisprudência, ao lado de estudos profundos como este, por exemplo, elaborado por Luciano Garcia Miguel.
De fato, o trabalho do Autor é texto da mais elevada qualidade técnica e científica. Se bem que o título da obra seja “A Incidência do ICMS nas Operações de Importação”, a amplitude do trabalho é algo bem mais abrangente. Examina o tributo desde sua concepção no altiplano constitucional (capítulo 2), passando pelas leis complementares e resoluções do Senado, relacionadas à exação (capítulo 3); atos expedidos pelo Confaz e pelas legislações internas dos Estados e do Distrito Federal (capítulo 4); para chegar à incidência do ICMS nas operações de importação (capítulo 5) e tratar, ao final, dos benefícios fiscais e da “guerra fiscal” do ICMS nas operações de importação (capítulo 6).
De fato, a produção de textos sobre o imposto é significativa em termos de quantidade, mas são poucas aquelas que refletem um posicionamento mais firme, calcado em sólida formação de Teoria Geral do Direito. E esse é, precisamente, o caráter deste livro que apresento ao meio jurídico e acadêmico, bem assim à comunidade dos funcionários da Administração Pública federal, estadual e municipal.
Luciano Garcia Miguel distinguiu-se, desde os primeiros semestres do Programa de Pós-Graduação, como referência para alunos, seminaristas e professores do Curso, com ponderações agudas e procedentes, sempre fundamentadas com consistência e rigor. E a defesa de seu trabalho foi feita com argumentos que bem impressionaram aos examinadores, tanto assim que mereceu a nota máxima, outorgada, naturalmente, por unanimidade.
Se a tudo isso acrescentarmos o esmero com que o discurso foi sendo construído, que se reflete na clareza, precisão e correção do idioma utilizado pelo ilustre bacharel e respeitado especialista da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, dar-me-ei por justificado ao dizer de minha satisfação em prefaciar este volume.
Estamos todos de parabéns pela categoria da obra e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sente-se honrada em produzir mestre dessa categoria.
São Paulo, 03 de junho de 2013
Prefácio
Paulo de Barros Carvalho
Professor Emérito e Titular da PUC/SP e da USP
INTRODUÇÃO
O ICMS é imposto que, por suas características, tem caráter nacional, embora a competência para instituí-lo tenha sido outorgada pela Constituição aos Estados e ao Distrito Federal.
Contudo, apesar de ter sido instituído e regulamentado por vinte e sete legislações subnacionais diferentes, o ICMS é regido pelo princípio da homogeneidade de sua incidência.
É possível constatar, nos diversos planos legislativos que regem esse imposto, um comando harmonizante. Ele está presente na minuciosa disciplina das normas constitucionais e no elevado número de matérias reservadas à lei complementar e a resoluções do Senado.
Ademais, o princípio da não-cumulatividade impulsiona a necessidade de harmonização das diversas legislações. O valor do ICMS pago no Estado de origem, relativo às operações interestaduais, deverá ser reconhecido pelo Estado de destino. Esse reconhecimento exige que eventuais benefícios sejam aprovados por todos os envolvidos, uma vez que a forma como a desoneração é concedida pode prejudicar o Estado de destino.
A análise da tributação do ICMS, portanto, deve se iniciar pela forma peculiar como a Constituição Federal desenha a competência legiferante dos Estados, especialmente em relação à concessão dos diversos benefícios fiscais relativos a este imposto.
Infelizmente, as fortes dissidências entre os Estados e o Distrito Federal têm causado sérias distorções na estrutura jurídica do ICMS, especialmente em razão da não observância das normas constitucionais relativas à concessão dos benefícios fiscais.
Tal atitude tem gerado conflitos entre os Estados e o Distrito Federal, amesquinhando o pacto federativo e a relação de confiança que deve prevalecer entre as pessoas políticas de direito constitucional interno.
Os benefícios fiscais relativos ao ICMS concedidos em desacordo com ordenamento jurídico comprometem, na atualidade, toda a eficiência do sistema tributário nacional, solapando o poder público de instrumentos de política fiscal e gerando insegurança jurídica e distorções entre as empresas que deles se utilizam.
Entre esses benefícios, os concedidos em operações de importação estão entre os mais prejudiciais, pois retiram das empresas nacionais a condição básica de isonomia, que deve estar presente em um sistema concorrencial e deve ser assegurada pelo ordenamento jurídico.
O trabalho que será desenvolvido tem por objetivo investigar a incidência do ICMS nas operações de importação, entre os quais se inclui a questão relativa à guerra fiscal. Para tanto, é mister analisarmos, com antecedência, os principais aspectos da disciplina jurídica desse imposto. Embora o corte metodológico adotado tome como objeto o direito posto, entendemos que dele não nos afastamos ao nos referirmos, em caráter essencialmente informativo, a algumas propostas de alteração do sistema tributário.
Firmadas essas premissas, passamos a detalhar o trabalho efetuado, que é divido em sete partes, sem contar essa introdução.
Na primeira, discorremos sobre a nossa visão do direito. Orientado finalisticamente à disciplina das relações intersubjetivas, o direito é uma conquista da humanidade. Foi construído, paulatinamente, desde o início dos mais incipientes agrupamentos humanos e, desde então, tem se desenvolvido e se sofisticado.
Atualmente, no estágio evolutivo a que chegou, é impossível entender o direito dissociado do conceito de sistema. Entre os autores que tratam o direito como sistema, Savigny é citado pelo seu pioneirismo; Kelsen, pela influência de sua obra para o estudo do direito; Engisch e Canaris, pela constatação de que o sistema de direito não pode desconsiderar os valores, que estão presentes tanto na formulação da norma quanto na sua interpretação.
A visão sistêmica ganha grande relevo nas correntes doutrinárias que veem o direito como um grande fato comunicacional. Há reflexos de suma importância na noção dos sistemas de direito positivo (corpo de linguagem prescritiva) e de Ciência do Direito (corpo de linguagem descritiva), como se irá demonstrar no decorrer dessa dissertação.
Na segunda parte, iniciamos a análise do ICMS pela sua disciplina constitucional. Por ser imposto de caráter nacional, como já foi referido, mas de competência dos governos subnacionais, a sua disciplina exigiu um grande esforço para harmonizar a sua incidência. Não é por outro motivo que a Constituição, de forma atípica, traça com minúcia as regras estruturantes desse imposto: incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre as prestações de serviços de comunicação e de transporte intermunicipal e interestadual; é não cumulativo; está sobre a competência dos Estados e do Distrito Federal; e incide nas operações interestaduais.
Na terceira parte, estudamos as matérias que a Constituição reservou para serem tratadas por lei complementar e por resolução do Senado. No caso da lei complementar, é importante analisar o tema de sua relação com a lei ordinária, ou seja, as hipóteses em que se estabelece uma relação de hierarquia e as hipóteses em que essa relação não se estabelece e, em relação à lei complementar tributária, a sua função de harmonizar o sistema tributário.
Em relação ao ICMS, assumem grande importância a Lei Complementar nº 87/96, que disciplina grande parte das matérias reservadas pela Constituição, e a Lei Complementar nº 24/75, que estabelece a forma como os Estados e o Distrito Federal concederão benefícios fiscais relativos a esse imposto.
À resolução do Senado foi reservada a tarefa de fixar a alíquota que irá ser utilizada nas operações e prestações interestaduais. É, na realidade, esse ato que estabelece a partilha do imposto incidente nas operações e prestações entre os Estados de origem e de destino.
Na quarta parte, analisamos os atos relativos ao ICMS expedidos pelo conjunto dos Estados e do Distrito Federal (convênios que concedem benefícios fiscais, outros tipos de convênios, protocolos e ajustes), bem como a forma como tais atos são recepcionados pela legislação interna dos Estados e do Distrito Federal. Para tanto, será necessário estudar a estrutura e funcionamento do CONFAZ e da COTEPE.
Finalizamos este capítulo com a análise da matéria que ainda deve ser disciplinada pela legislação dos Estados e do Distrito Federal (fixação das alíquotas do ICMS, deveres instrumentais e as sanções para as infrações tributárias).
Na quinta parte, focamos nossa atenção para a incidência do ICMS nas operações de importação, por meio da análise dos critérios da hipótese e do consequente da regra matriz de incidência. Nesse tópico, serão abordadas questões relevantes, como a sujeição ativa nas operações de importação (por conta própria, por conta e ordem de terceiros e por encomenda), a incidência nas importações efetuadas por meio de arrendamento mercantil e nas importações efetuadas por não contribuintes e questões relativas à composição da base de cálculo do imposto.
Na sexta parte, detemo-nos sobre o tema dos benefícios fiscais nas operações de importação. São investigados os principais benefícios concedidos, como o drawback, destacando como ocorre o trâmite da proposta desde a sua apresentação no grupo de trabalho específico na COTEPE até a sua aprovação pelo CONFAZ. Quanto aos benefícios irregularmente concedidos, expomos nosso pensamento sobre as causas e as possibilidades de reação face à guerra fiscal.
Finalmente, na última parte, sintetizaremos as principais ideias contidas nesse trabalho.