Como vou defender que a retórica é uma atitude filosófica, começo por dizer que a tarefa da filosofia do direito pode ser reduzida a dois grandes campos de investigação. Por um lado ela procura saber o que é o direito, como ele pode ser descoberto, conhecido, consultado. Por exemplo: o direito vem objetivamente da lei ou vem do que os juízes decidem que a lei quer dizer? E quando a sociedade não obedece à lei, por vezes até órgãos do próprio Estado não seguem a lei, o direito é o que a lei diz ou o que seus destinatários efetivamente fazem? Este é o problema do conhecimento do direito, o problema da norma jurídica.
Por outro lado, a filosofia do direito ocupa-se da questão da justiça, do valor, numa palavra, da ética no direito: existe uma regra acima da lei, acima dos tribunais e da própria Constituição? Por exemplo, uma regra que afirme que o aborto é crime independentemente do que diga o direito posto? Ou que proteja os direitos humanos de todos mesmo quando os governos nacionais e o seu direito os neguem a determinados grupos? Este é o problema do direito subjetivo. As repercussões práticas dessas duas ordens de problemas são imensas e muito importantes, dizem respeito à própria essência do que se entende por “direito”.
O maior desafio no meu trabalho filosófico tem sido construir uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. Apesar de milenar, a retórica foi pouco a pouco posta de lado por uma sociedade tecnológica e violentadora da natureza. A perspectiva retórica, que combate a verdade no conhecimento e prega a tolerância na ética, contraria dois adversários poderosos, quais sejam a religião e a ciência, instituições monoteístas, a serviço de uma “verdade certa” contra “inverdades erradas”.
Por duvidar das verdades, a retórica é também mal vista pelos regimes políticos não-democráticos. Quando discussões sobre conhecimento e ética se unem a práticas libertárias em prol de direitos tornam-se ainda mais perigosas para o monopólio do poder. Em nosso país, duas tentativas de democratização falharam dramaticamente e o pensamento livre que subjaz a toda teoria foi abortado. Não é à toa que, em regra, a doutrina jurídica no Brasil tem se resumido em transcrições inúteis, no estilo “recortar e colar”, feita por amadores que não têm tempo de estudar nem de pensar e inventaram essa maneira de produzir livros manualescos, longos e repetitivos, relatos descritivos do que dizem as leis e os tribunais. E hoje incorporaram-se à massificação da educação jurídica e dos concursos públicos.
Mesmo o leitor esclarecido não tem contato com a retórica. A civilização ocidental, nos últimos cerca de duzentos anos, quase que enterrou a retórica, cuja perspectiva era dominante na educação. Nem a religião teve tanto sucesso no combate à retórica como, na modernidade, teve a ciência. Por isso nós modernos nada sabemos de retórica. A filosofia retórica é paradoxal, pois combate a verdade e de certa forma pretende a verdade, é a velha acusação contra o ceticismo. Mas tenta responder a essa acusação. Dizer que a retórica pretende a verdade é frase que deve ser entendida metaforicamente; pelo menos não é o que tradicionalmente se entende por verdade que a retórica procura. A verdade tradicional é enunciado cogente, de aceitação racionalmente obrigatória, como dois e dois são quatro. A verdade retórica é um acordo momentâneo, logo extremamente mutável e autorreferente, no qual influem incontáveis fatores.
Este texto vai se deter mais de perto na crítica filosófica, jurídica e da própria ciência biológica a uma percepção “verdadeira”, superior às demais. Para começar, posso ressaltar as seguintes três teses de base:
1. Contra um pensamento muito difundido nos meios intelectuais e mesmo entre o vulgo, retórica não é “apenas” ornamento, embora os ornamentos retóricos sejam muito importantes para seduzir e persuadir.
2. Contra os ontólogos, que se veem como os únicos filósofos e não consideram filosófica a postura retórica, defendo que retórica é um tipo de filosofia que prescinde da verdade, pois filosofia não é a busca da verdade, da aletheia que se descobre, mas da sabedoria; o livro pretende fazer filosofia retórica e não, como os próprios retóricos advogam, retórica filosófica. A diferença não é só jogo de palavras.
3. Contra Aristóteles e toda a tradição, coloco a tese, realista, de que retórica não consiste apenas em persuasão, mas inclui também engodo, ameaça de violência e quaisquer estratégias que não consistam em coação irresistível (pois aí configura-se ausência de retórica, não é preciso falar). Ou seja, a retórica não está necessariamente ligada ao “bem”, ao “bom ethos”, como queria Aristóteles. Aí ela está mais de acordo com os sofistas que ele queria combater.
Em suma: aplico um conceito próprio de retórica para defender a ideia de que verdade e justiça únicas, corretas, são ilusões altamente funcionais e que os acordos precários da linguagem não apenas constituem a máxima garantia possível, eles são os únicos. Além de serem temporários, autodefinidos e circunstanciais, referentes a promessas que são frequentemente descumpridas em suas tentativas de controlar o futuro, esses acordos são tudo o que pode ser chamado de racionalidade jurídica.
Novas pesquisas sobre o cérebro humano apontam para um claro contraste entre como ele efetivamente lida com o ambiente e essa perspectiva, milenar e profundamente arraigada no senso comum, de que o mundo está lá para ser observado tal como é, “dado”. A psicologia da percepção também tem desempenhado papel importante, ao revelar que o dado é construído e que não existem propriamente ilusões e decepções perceptivas, o que implicaria uma experiência “correta”, mas sim diferentes percepções.
Tais “ilusões” não ocorrem apenas em casos nos quais os limites sensoriais e perceptivos em geral são levados a extremos, em situações-limite ou programadas, como no caso dos cães de Pavlov, mas parecem ser muito mais comuns e parte do dia a dia de humanos e animais a ele mais próximos. Daí a conclusão: os órgãos dos sentidos constroem o mundo “externo” da melhor maneira que podem, para melhor adaptar a vida nele.
Assim a cognição humana pode ser dividida em três grandes setores: o mundo circundante, o “mundo das coisas”, dos objetos em torno; o mundo do corpo e das experiências que ele transmite, o “mundo corporal”, como a dor, o calor e o frio; e o mundo dos pensamentos, sentimentos, imaginação, o “mundo espiritual”[1]. Pessoas saudáveis normalmente separam com relativa nitidez esses três níveis da experiência. Pessoas com disfunções mentais, tipo esquizofrenia, tendem a confundi-los. Porém essas fronteiras são muito tênues e loucuras coletivas como a “solução final” dos nazistas – a banalidade do mal de que fala Hannah Arendt – atestam isso.
É este o sentido da autorreferência retórica: não existe uma instância de controle externa e objetiva em relação à linguagem. Um psicopata sente sua conduta tão “confirmada” pelo mundo quanto uma pessoa sã e só um observador externo conseguiria separá-los. E essa “normalidade” do observador externo só se constitui com o acordo de um grande número de outros indivíduos, pois uma loucura que a maioria das pessoas considera sanidade não pode ser encarada como loucura. Da mesma forma que seus cérebros, os seres humanos não têm qualquer experiência de que existe algo entre eles e o mundo exterior, uma instância mediadora, e o senso comum os leva a perceber o ambiente como um “dado” empírico. Mas essa mediação é claramente feita pela linguagem e é sempre interessante lembrar como a teoria do conhecimento demorou a perceber isso.
Os órgãos dos sentidos traduzem a infinita multiplicidade dos estímulos do mundo dos eventos em estímulos bioelétricos, pois o cérebro somente pode entender essa linguagem (até a linguagem dos hormônios precisa ser assim traduzida, para que possa fazer efeito nas células nervosas do cérebro). E tampouco esses estímulos bioelétricos, que são também multifacetados e circunstanciais, podem explicar-se por relações de causa e efeito, sujeito e objeto. Nota-se o conceito de autopoiese biológica.
As pesquisas experimentais apontam na mesma direção:
Uma prova da inespecificidade dos potenciais (estímulos) nervosos é a possibilidade, com um único e mesmo estímulo elétrico artificial em diferentes áreas do cérebro, de provocar diferentes alucinações sensoriais, p. ex., sensações visuais no córtex posterior, auditivas no córtex temporal, somatosensoriais no assim chamado lobo pós-central.[2]
Quer dizer, para o cérebro existem apenas as mensagens neuronais que vêm dos órgãos dos sentidos, mas não os órgãos dos sentidos em si mesmos, os quais o cérebro não percebe, da mesma maneira que, para o expectador do cinema, a câmera não existe nem é percebida. Assim: o que chega ao córtex ínfero-posterior (occipício) é uma impressão visual, totalmente independente da “origem real” da mensagem, do sinal de origem. O cérebro transforma estímulos físicos e químicos em impulsos nervosos sob condições próprias, faz sua própria realidade.
Isso leva à estranha verificação de que o cérebro, ao invés de ser “aberto ao mundo”, como parece ao senso comum, é em certo sentido um sistema fechado em si mesmo, que interpreta e avalia sinais neuronais segundo critérios desenvolvidos por ele próprio, de cujas origens e significados “verdadeiros” nada de confiável ele (cérebro) sabe. Em outro sentido ele é aberto às experiências do mundo dos eventos, que vão influenciar seu desenvolvimento. O ambiente sensorial percebido pelos seres humanos é uma construção do cérebro, que nada tem a ver com uma pretensa “realidade”, ainda que não seja, de modo algum, uma construção inteiramente arbitrária.
Apenas, porque a maioria das questões científicas apresenta pouco ou nenhum interesse, há um maior acordo sobre os temas científicos. Mas também a chamada verdade racionalmente cogente é retórica. Acontece que, quando o relato vencedor vai significar uma questão grave para as pessoas cujos relatos concorrem, ou seja, quem vencer terá grande vantagem e quem perder terá grande desvantagem na vida, haverá grandes comoções, paixões, desejos… Aí é que se vê a fragilidade desses acordos.
Isso também na esfera interna, cujo relato solipsista entra em frequente confronto com o controle público da linguagem, que são os relatos externos concorrentes. Assim um sujeito pode dizer a si mesmo que é um grande jurista e achar todos os demais idiotas, enquanto os outros podem achá-lo um tolo desagradável. Esses relatos entram em conflito e a vitória de um deles vai depender de inúmeros fatores. Uma mesma situação pode, assim, ser definida como autoconfiança de um incompreendido ou como loucura de um chato medíocre.
A “realidade”, para a filosofia retórica, é assim o relato vencedor. O poder consiste exatamente na faculdade de interferir sobre esse relato vencedor. O poder parece ser a maior das paixões do ser humano, um animal gregário e político, condenado dentro de sua própria linguagem. Por isso deter poder modifica o comportamento, divide os seres humanos entre os que têm e os que não têm poder. Mais que dinheiro, sexo ou beleza, que são apenas meios para adquirir e exibir poder. Para os propósitos da retórica, tem poder quem está em condições de obter acordo de outra pessoa, mas esse acordo vai muito além da livre adesão, ou seja, pode implicar algo que a outra pessoa não desejaria ou evitar algo que ela desejaria: condições de torturar, de se fazer amar, de conseguir um prato de comida, conceder ou negar sexo, em suma satisfazer ou não desejos e inclinações. Basta observar as modificações que a circunstância de deter um pouco de poder exerce sobre as pessoas, seja um juiz, um coordenador de um curso universitário, um burocrata, uma beleza passageira ou mediana inteligência.
O direito é um dos fatores poderosos na direção e constituição desse relato vencedor. Quando o STJ decide que não há mais direito ao crédito-prêmio de IPI, há vários relatos adversos concorrendo, como sempre. Mas um relato defendido pelo STJ é protegido pelo direito institucionalizado, logo é bem provável que seja vencedor, há um sistema democrático que se organiza em termos de tribunais, hierarquias etc., justamente para constituir o relato e controlar a angústia diante do futuro.
Por isso a filosofia retórica advoga a pulverização do poder: quanto menos seres humanos concentrarem poder ou permanecerem com poder, mais a insanidade trazida pelas certezas será combatida. Mandatos curtos para ocupantes de tribunais superiores, dificuldades à reeleição e profissionalização de políticos, diminuição radical no número de cargos públicos “de confiança”… As soluções institucionais estão aí, todas contrariando essa obsessão atávica dos humanos por ter poder sobre os demais. Até hoje têm sido utópicas diante do absurdo lógico que é seres humanos poderem legislar em causa própria, como o fazem políticos e magistrados.
É assim que, do ponto de vista da filosofia retórica, não há diferença entre o enunciado E = massa X velocidade da luz ao quadrado (E = mc2) e o fato de alguém ter morrido num acidente de trânsito ou não. Se os vencedores concordarem que aquela pessoa não faleceu, pois a viram ressuscitar ou conversam diariamente com ela no cemitério, por exemplo, esta é a verdade. Por isso o Cristo nasceu de mulher virgem, o papa é infalível, Plutão deixou de ser um planeta e os reinos da natureza não são apenas animal, vegetal e mineral (pois há vírus e fungos). Para comprovar que E=mc2 é preciso um razoável grau de conhecimento matemático do qual a maioria das pessoas não dispõe; então elas acreditam porque as pessoas daquele grupo que têm esse conhecimento dizem-lhes que estão de acordo com Einstein. E também, pragmaticamente, repita-se, porque esse enunciado não tem muita importância para a grande maioria das pessoas, diferentemente do que ocorre com o direito.
Observe-se a seguinte opinião:
Entretanto, do ponto de vista puramente psicológico, torna-se sem dúvida mais grave o adultério da mulher. Quase sempre a infidelidade no homem é fruto de capricho passageiro ou de um desejo momentâneo. Seu deslize não afeta de modo algum o amor pela mulher. O adultério desta, ao revés, vem mostrar que se acham definitivamente rotos os laços afetivos que a prendiam ao marido e irremediavelmente comprometida a estabelecida estabilidade do lar.[3]
Este era o relato vencedor. Será hoje? É por isso que o demônio e os buracos negros têm o mesmíssimo grau de fidedignidade, ou seja, são retóricos. E a ética cética só pode ser uma ética de tolerância.[4]
Editora Noeses p/ Revista Filosofia
João Maurício Adeodato
Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife, Livre Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Pesquisador 1-A do CNPq. Currículo completo em http://lattes.cnpq.br/8269423647045727
[1] ROTH, Gerhard. Erkenntnis und Realität: das reale Gehirn und seine Wirklichkeit, in: SCHMIDT, Siegfried J. Der Diskurs des radikalen Konstruktivismus. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1987, p. 234-236.
[2] Idem, p. 233: „Ein Beweis für die Unspezifität der Nervenpotentiale ist die Möglichkeit, mit ein und demselben künstlichen elektrischen Reiz in unterschiedlichen Gebiete des Gehirns ganz unterschiedliche sensorischen Halluzinationen hervorzurufen, z. B. im Hinterhauptcortex visuelle Empfindungen, im temporalen Cortex auditorische, im sog. Postcentralen Gyrus somatosensorische.”
[3] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil (vol. 2 – Direito de Família). São Paulo: Saraiva, 2000, 17ª ed., p. 117. Esse trecho é citado em muitas páginas na internet. A obra, devidamente atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto, está em sua 39ª edição.
[4] Uma discussão mais aprofundada desses temas está em meu novo livro: Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011.
UMA TEORIA RETÓRICA DA NORMA JURÍDICA E DO DIREITO SUBJETIVO
João Maurício Adeodato
2ª edição, revisada e ampliada
O autor constrói uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. Apesar de milenar, a retórica foi, pouco a pouco, posta de lado por uma sociedade tecnológica e violentadora da natureza. A perspectiva retórica, que combate a verdade no conhecimento e prega a tolerância na ética, contraria dois adversários poderosos: a ciência e a religião. Este livro seria inovador só por isso, mas vai muito além do combate às ontologias da verdade.
O autor defende três teses de base: a) contra um pensamento muito difundido nos meios intelectuais e mesmo entre o vulgo, retórica não é “apenas” ornamento, embora os ornamentos retóricos sejam muito importantes; b) contra os ontólogos, que se veem como os únicos filósofos e não consideram filosófica a postura retórica, o livro defende que retórica é um tipo de filosofia, que prescinde da verdade, pois filosofia não é a busca da verdade, mas da sabedoria, ou seja, não é um livro de retórica filosófica, mas de filosofia retórica; c) contra a própria tradição retórica, coloca-se a tese de que retórica não consiste apenas em persuasão, mas inclui também engodo, ameaça de violência e quaisquer estratégias que não se reduzam a coação irresistível (pois aí tem-se ausência de retórica, não é preciso falar). Trata-se de uma explicação sobre como a retórica é efetivamente usada e não como se gostaria que ela o fosse.
As grandes referências filosóficas do livro são Friedrich Nietzsche, além de clássicos da retórica como Aristóteles e Quintiliano, mas há influência de mestres como Lourival Vilanova, Miguel Reale, Carlos Cossio, Theodor Viehweg, Ottmar Ballweg, Paulo de Barros Carvalho e, sobretudo, Tercio Sampaio Ferraz Junior, que escreveu o prefácio.