“O ambiente do ser humano é a linguagem, a qual molda e adapta o mundo a ele, um mundo que vai se interpor entre ele e a natureza, entre ele e um ambiente não-linguístico, o qual ele ignora inteiramente.” João Maurício Adeodato
Está no prelo a segunda edição revisada e ampliada da obra de João Maurício Adeodato, ” Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo”. O lançamento desta nova edição será no XI Congresso do IBET. Aguardem!
APRESENTAÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO
A retórica realista que propus na primeira edição deste livro – e que veio sendo construída em outros anteriores – baseia-se em três teses básicas, todas pensadas em oposição a perspectivas prevalecentes na cultura ocidental contemporânea, no que diz respeito à retórica e à filosofia geral; inspiradas no filósofo cético helenista Sextus Empiricus, cujas obras sempre têm por títulos “contra” (adversus) as diferentes ciências que ele quer combater; foram aqui denominadas “contra os filósofos ontológicos”, “contra os retóricos aristotélicos” e “contra os filósofos ontológicos e os retóricos aristotélicos”.
Como o pano de fundo continua a ser argumentar contra a tirania da “verdade”, provavelmente o conceito retoricamente mais bem-sucedido da cultura ocidental, procuro mostrar também a ingenuidade de abordagens supostamente científicas sobre a “realidade social”, como nas ditas “ciências sociais” e, sobretudo, quanto a aspectos que chamam de “jurídicos”, as quais pretendem literalmente “descobrir” leis que governariam peculiaridades e desenvolvimentos das sociedades humanas.
Para isso, ressalto uma distinção conceitual entre perspectivas empíricas e perspectivas normativas, além de um terceiro gênero, que já estava latente em minha crítica às escatologias na primeira edição, mas só agora foi tornado explícito.
Uma teoria empírica dirige-se ao passado e procura descrevê-lo tal como parece àquele que a expressa; é uma perspectiva menos ambiciosa, mas nem por isso livre de divergências, sobretudo quanto a sua suposta característica de abster-se de juízos de valor. Uma teoria normativa tem como vetor o futuro, para o qual procura prescrever otimizações, melhorias na visão de seu autor, quer modificar, dirigir, influenciar o ambiente e a conduta das pessoas, em geral com objetivos idealistas edificantes. Uma terceira variante, que se pode chamar de escatológica, é aquela que pretende utilizar o passado para descrever o futuro, isto é, compreender algo que ainda não existe a partir da observação daquilo que acredita ter acontecido; são as teorias de inspiração “científica”, sobretudo as que pretendem inserir o direito nas ditas ciências sociais, para as quais é possível explicar a sociedade a partir da “descoberta” de “leis” (etiologias) e assim prever situações futuras (escatologias).
Nada disso tem sentido para uma filosofia retórica do direito como aquela proposta aqui e daí a retórica realista ter uma perspectiva empírica.
No sentido de melhor fundamentar as teses aqui defendidas, houve várias modificações e acréscimos em relação à primeira edição. A antropologia filosófica que vê o ser humano como carente, a qual fundamenta a retórica, foi mais detalhada, mostrando que a capacidade de viver em ambientes os mais diferentes, que caracteriza nossa espécie, não evidencia qualquer superioridade de sua “razão”, porém sim a inadaptabilidade de sua pobreza de instintos diante dos estímulos do mundo e a compensação promovida por uma linguagem que constitui seu único meio ambiente, posto que jamais percebe quaisquer eventos, mas tão somente relatos sobre eles.
Assim, nada há além de solipsismo e vaidade para considerar o chamado homo sapiens como um plus biológico ou ético, a “coroa da criação”. Os dinossauros, vírus, ácaros e bactérias parecem mais bem-sucedidos na luta pela vida. Daí a fascinante aventura humana de construir seu próprio mundo. Os trechos que analisam o sociobiologismo e a neurofisiologia não pretendem, portanto, fazer ciência, mas tão somente mostrar que são argumentos como quaisquer outros.
Não conheço, na história da filosofia ocidental, uma filosofia tão radicalmente retórica como aquela proposta aqui, em que pese aos muitos precursores que tenho cuidado de mencionar. A tripartição adotada é inspirada em Ottmar Ballweg, sem dúvida, mas ele não é responsável por quaisquer dos desdobramentos sugeridos, pois, fiel à tradição aristotélica, sempre achou que a retórica se reduziria aos meios de persuasão e, por não buscar a verdade, não teria uma atitude filosófica.
Ballweg, por sua vez, assim como eu, inspira-se em Friedrich Nietzsche, o qual nos fala de três níveis: retórica como dýnamis (δύναμις), como téchne (τέχνη) e como epistéme (ἐπιστήμη). O leitor vai notar neste livro a grande influência da teoria do conhecimento de Nietzsche, mas não de sua ética, ainda que ele tenha se preocupado mais com ética do que com conhecimento. Outra influência marcante vem da sofística clássica, antes que Aristóteles advogasse a redução da retórica à persuasão, postura bem menos adequada a uma filosofia do direito.
A contribuição de Schopenhauer, assim como a de Aristóteles, não chega à retórica material, e daí à retórica como filosofia, porque acredita na verdade. Ambos têm o grande mérito de entender a retórica como estratégia, erística ou persuasiva, respectivamente, mas não dão o passo radical da retórica material, isto é, compreender a realidade do mundo como relato vencedor.
Muitos autores brasileiros são referidos, claro. Mas, com exceção de Tercio Sampaio Ferraz Junior, não menciono retóricos brasileiros porque, além de meus alunos, ainda muito jovens, eles simplesmente não existem. Uns poucos céticos brasileiros – ligados a instituições para estudo da filosofia, pois o ceticismo sempre esteve estranhamente ausente das faculdades de direito – já mencionei em outras obras. De toda forma, não fazem filosofia retórica e não são mais referidos neste livro.
De toda forma, a solidão sempre foi companheira do filósofo.
Sem escola, nem de samba, o nome desta minha filosofia do direito não é, portanto, o mais importante. Poderia chamar de “retórica dialética” em lugar de “realista”, posto que, como na dialética de Marx, sujeito e objeto modificam-se mútua e eternamente. Desisti de “dialética” por dois motivos: primeiro, essa palavra é utilizada por tantos e em tantos sentidos, tão diferentes quanto confusos; segundo porque a retórica realista dispensa completamente esse dualismo entre sujeito e objeto e os dissolve na linguagem.
Ao elevar a retórica ao nível de uma filosofia do conhecimento e da ética, a retórica realista radicaliza de modo que me parece definitivo as inserções de historicismo, ceticismo e humanismo e afasta de vez as certezas incutidas pelas concepções dominantes de senso comum, religião e ciência, seus milenares adversários, abrindo caminho para uma ética retórica da tolerância, como pretendo expor no futuro.