Seja pela facilidade de comparar preços e características dos produtos, seja pela comodidade de ver a mercadoria entregue em sua residência (ainda que venha de estabelecimento bem distante), é certo que as transações feitas pela internet vem crescendo contínua e substancialmente na participação do setor varejista em nosso país.
Essa mudança de panorama, entretanto, vem causando um curioso efeito tributário: em tais operações[1], nossa ordem jurídica prescreve que a incidência do tributo dá-se na saída do estabelecimento, cabendo a cobrança do tributo ao Estado no qual este se localize.
Ao tempo em que a operação de venda e compra da mercadoria se dava em uma loja física, ali mesmo havendo a tradição, não parecia haver problemas. Dificilmente um consumidor saía de seu estado em busca de melhores condições de compra e, assim, tanto a mercadoria, quanto a receita, como também o tributo, ficavam todos dentro da mesma esfera econômica estadual.
Quando o balanço das operações se inverte, passando os comerciantes a venderem cada vez mais por meio da internet e menos por meio das lojas físicas, a situação se complica. Porque determina a incidência do tributo na saída do estabelecimento comercial, os mecanismos de apuração do ICMS, terminam concentrando a arrecadação nos estados nos quais se situam o estabelecimento em detrimento daquele local em que se encontra o consumidor e para onde vai, de fato, a mercadoria.
Tal situação fica ainda mais preocupante para os estados nos quais estão os consumidores, porque aquele produto adquirido por intermédio da internet não mais circula no mercado local: a loja do estado de destino não mais o vende e, com isso, não dá mais ensejo à incidência do ICMS naquele local. Trata-se, sem sombra de dúvidas, de instrumento que desloca a riqueza de um estado para outro, afetando negativamente o já precário equilíbrio federativo fiscal.
A percepção do problema deu início a uma série de manifestações por parte das autoridades dos estados de destino das mercadorias, sendo a mais incisiva delas registrada no chamado “Protocolo ICMS nº 21/2011”. O documento produzido no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária, determinava aos estados que fizessem incidir o chamado “diferencial de alíquotas” das operações interestaduais em todas as operações realizadas pela internet que destinassem mercadorias a consumidor localizado em outro estado.
Tal iniciativa foi recebida com grande desconfiança pelos demais estados, vendedores e consumidores, pois gerava incerteza sobre a alíquota aplicável no momento da saída da mercadoria e o agravamento da carga tributária. Entre autos de infração, impugnações, recursos administrativos e ações ajuizadas pelos contribuintes, o assunto foi também levado ao Supremo Tribunal Federal sob a forma de Ação Direta de Inconstitucionalidade[2], ainda pendente de julgamento.
Curioso observar que, mesmo em meio a tanta controvérsia no que diz respeito aos locais da incidência da norma, praticamente todos os manuais e cursos de ICMS tratam de definir o critério espacial – aspecto espacial, elemento espacial – da sua norma-padrão de incidência como “território do estado”, dando ensejo a várias discussões a respeito de “soberania fiscal” e de um “óbvio” princípio da territorialidade da tributação, como se a arrecadação tivesse “dono” antes mesmo de feita a lei. Olvida-se que a circunstância de que o tributo incide em um ou outro lugar é fruto de uma decisão legislada e, por isso – e só por isso –, impõe-se.
Situações como essa de que falamos no começo do texto logo põem em evidência que uma tal construção teórica, sobre ser insuficiente, turva o argumento jurídico com proposições mais afeitas a outros discursos (em especial o da economia e o da política), dificultando uma tomada de posição firme e consistente, bem como a compreensão de quais amarras o direito – sim, o direito mesmo – impõe àquela decisão.
Acredito que precisamos pensar o problema do lugar na incidência dos tributos de maneira diversa, mais atenta, estabelecendo categorias mais específicas, analiticamente mais robustas para perfazer o reduzir a complexidade do fenômeno a algo que possa ser submetido ao exame da prova. Só assim, poderemos voltar nossos olhos para os constrangimentos que o direito positivo determina àquela escolha do lugar da incidência.
Já é mais do que hora para que todos nós, que estudamos e lidamos com o direito tributário, voltemos nossa atenção para as marcas de espaço nas normas jurídicas exacionais, despojando-nos de velhos preconceitos e falsas obviedades, esforçando-nos, tal como já ocorreu há muito na seara penal, para construir os alicerces de uma teoria do Lugar do Tributo.
Lucas Galvão de Britto é Mestre e Doutorando pela PUC-SP. Advogado. Professor nos cursos de Especialização em Direito Tributário da PUC-SP e IBET. Autor do livro O Lugar e o Tributo – Ensaio sobre a competência e definição do critério espacial da regra-matriz de incidência tributária, publicado pela Editora Noeses.
[1] No que diz respeito às operações de varejo, o adquirente é consumidor final e, no mais das vezes, não é designado pela lei como contribuinte do tributo.
[2] ADI nº 4.628.