1. Primeiras palavras
2015 foi marcado por dois fatos de grande relevância para o cenário processual tributário brasileiro – o novo Código de Processo Civil, com vigência ajustada para março de 2016, e a “crise” instalada em relação ao contencioso administrativo federal, fruto de circunstâncias que implicaram a temporária desativação do CARF e a subsequente tentativa de reorganização do órgão.
A esses fatos, somam-se outros, tomados a priori como ordinários (infelizmente) e que permeiam a vida política e econômica nacional, implicativos de sensível debilitação das contas públicas.
A partir desses elementos (ou de sua combinação) – em especial os dois primeiros, tomado o natural impacto que o terceiro traz –, possível não só traçar um prognóstico dos desafios que encontraremos, mas principalmente expor as possibilidades (reais) de avanço extraíveis da grande “janela de oportunidade” que nos foi aberta.
2. Sobre o Código de Processo Civil de 2015
2.1. O novo Código tomado em perspectiva histórica
O Código de Processo Civil de 2015 pode e deve ser visto, antes de qualquer coisa, como um fato, a ser compreendido em sua projeção histórica.
Observado por esse ângulo, não o tomaremos, aqui, em pontos isolados, analisando esse ou aquele fragmento, notadamente para compará-lo com frações do diploma “velho” – ao proceder dessa forma, sem antes explorar aquel’outro aspecto, corremos o risco de seguir invocando parâmetros antigos (e indesejados).
É inegável, seguido esse rumo, que a nova lei constitui, em certa medida, uma espécie de reação a práticas consolidadas sob o regime “velho”. Experimenta, por isso, a condição de fato-sintoma e, como tal, indica para a existência de um outro fato, de tom patológico, a ser removido não propriamente pelo Código, senão pelos que vão aplica-lo.
Aí estaria, insistimos, a razão pela qual a tomada de diretrizes de interpretação que governavam o Código “velho” talvez não seja a melhor prática – não pelo menos para quem pretende retirar do novo texto o máximo em termos de proveito prático.
Olhar para o “antigo” em tom crítico (mas não “destrutivo”) para compreender o projeto definido pelo “novo”: esse deve ser, pensamos, o caminho a ser seguido.
2.2. Instrumentalidade como meio de assegurar a efetividade do processo
O processo não é um fim em si mesmo. Eis a parêmia – mais que conhecida – que revela o sentido, em direito processual, do vocábulo instrumentalidade.
Há, pensamos, direta relação entre instrumentalidade e efetividade (assim entendida a capacidade que há de ter o Direito no sentido de transpor o mundo das abstrações teóricas, para tornar-se factualmente perceptível).
Os conflitos de interesse – fato gerador da relação processual – assentam-se no direito de fundo; é nesse plano, por sua vez, que as relações humanas são tecidas. Processo verdadeiramente instrumental é o que, mais do que falar de si mesmo, fala do direito de fundo, enfrentando, por conseguinte, as relações (ou fatos relacionais) àquele acopladas.
Enfrentando-os (os fatos relacionais de tom material), o processo pavimenta sua própria efetividade, à medida que se encaminha para o mundo real, para as coisas vivas, tal como se apresentam na experiência factual.
2.3. Instrumentalidade e efetividade do Direito
Não é só o processo que carrega, em si, a ideia de instrumentalidade: o Direito (seja ele qual for, inclusive o tributário) é, em sua essência, instrumental.[1]
O Direito serve ao “social”, ao extrajurídico, ao real.[2] Não é nele (tampouco no processo), portanto, que se deposita a razão de sua existência.
Quando se distancia do real, o Direito como que se perde em suas abstrações, deixa de ser compreendido por aqueles que seriam seus usuários. E assim também ocorre com o processo: quando se distancia do direito de fundo, ele se perde em suas abstrações; descredencia-se, por conseguinte, a mensagem dele emanada, o que debilita as instituições, fazendo fracassar o Direito e o próprio Estado, base sobre a qual o primeiro (o Direito) se assenta. Um círculo vicioso.
Falar em instrumentalidade (não só do processo, senão do próprio Direito, inclusive o tributário) é recobrar (ou tentar recobrar) o Direito como elemento que participa (ou deveria participar) da vida social.[3]
2.4. Instrumentalidade (e efetividade) no direito tributário: por que o “processo tributário” pode e deve ser visto como o próprio “direito tributário”
O Direito Tributário, parte do todo, é igualmente instrumental: sua missão não está nele mesmo, senão na realização de uma peculiar conduta, a de pagar tributo.
Não nos consideramos fiscalistas, mas o fato é que, embora não se limite (normativamente falando) às regras-matrizes de incidência, o Direito Tributário só é pragmaticamente relevante com o surgimento dessas normas – nas etapas anteriores da cadeia de positivação, sabe-se, o Direito Tributário é mera especulação; exemplo disso é o imposto sobre grandes fortunas.
Devemos aceitar, portanto, que o que chamamos de conflito tributário expressa-se, pragmaticamente, sobre os efeitos que a regra-matriz gera, efeitos esses que, de ordinário, se explicam pela noção de exigibilidade – vocábulo que encerra a eficácia provinda dos atos constitutivos da obrigação tributária.[4]
Esses atos, sabemos, inspiram-se (ou deveriam inspirar-se) em precedente regra-matriz de incidência – por isso, o debate tributário acaba por resvalar, no mais das vezes, sobre a própria regra-matriz. Não descuremos, porém, do “real”: Fisco e contribuinte, quando se põem em conflito, não discutem normas abstratas em si mesmas; o debate é, no mundo vivo, sobre exigibilidade, expressando-se, fundamentalmente, em quatro diferentes fases:
(i) a preventiva, na qual a exigibilidade debatida é potencial (há regra-matriz, mas ainda não se constituiu a obrigação; a exigibilidade é, assim, uma contingência que ameaça o contribuinte e é isso que o processo instrumentaliza);
(ii) a repressiva, em que a exigibilidade já está efetiva (para além da regra-matriz, a obrigação já se constituiu, por lançamento ou por declaração do contribuinte; o processo instrumentaliza essa posição material e serve para convocar o Estado-juiz a falar se a exigibilidade posta deve ou não seguir operando);
(iii) a “reparadora”, em que a exigibilidade encontra-se exaurida pelo pagamento (o processo toma essa referência, instrumentaliza-a e serve ao desejo de fazer reverter, pragmaticamente, o status financeiro anterior ao pagamento);
(iv) a executiva, em que se pressupõe que exigibilidade, por pendente, foi transformada em executabilidade (“exigibilidade forte”) – o que se pretende é a realização compulsória do efeito prático derivado da obrigação, o pagamento até então recusado.[5]
Com esses registros, o que se pretende demonstrar é que não é possível compreender o “processo tributário” (em sua perspectiva instrumental) à revelia de conceitos pertencentes ao direito de fundo (mormente o de exigibilidade). Usando outros termos: as categorias processuais tributárias devem ser explicadas não propriamente por conceitos de “processo”, mas pela espécie de exigibilidade posta em xeque. E é por conta do peculiar tipo de exigibilidade sobre o qual se assenta o debate que a atividade processual deve se desenvolver.
“Processo tributário” efetivo – cumpridor da noção de instrumentalidade – é, portanto, o que se compromete a interferir eficazmente sobre a exigibilidade trazida a contexto – (i) impedindo-a (se potencial), (ii) desconstituindo-a (se efetiva), (iii) revertendo-a pragmática-financeiramente (se exaurida), (iv) realizando-a compulsoriamente (se pendente).
No cumprimento desse projeto, note-se que o processo funde-se ao direito tributário, criando uma única realidade, em que o primeiro serve ao segundo e dele recolhe suas bases – tudo a um só tempo.
2.5. O processo tributário e a inexistência de um estatuto que lhe seja próprio – recolocando em prática o conceito de instrumentalidade
Não há, no Brasil, estatuto normativo que cuide de processos especificamente tributários. Por conseguinte, não se vê, em norma posta, qualquer referência a ações especificamente desenhadas para os fins referidos no item anterior.[6]
Por décadas, foram construídos, tanto por esforço doutrinário, como por intervenção jurisprudencial, “nomes” para recobrir aquelas realidades – declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária, anulatória de débito fiscal, repetição de indébito tributário, execução fiscal tributária –, o que obviamente não seria suficiente para colmatar a lacuna então deixada.
Pois é o Código de Processo Civil, dada a sua condição de normativo geral, que nos socorre desde sempre na composição desse problema, transformando em aparente a sobredita lacuna.
Solucionada a questão, uma outra surge (justamente a que nos recoloca o problema da instrumentalidade): a utilização do diploma geral descaracteriza o processo como tributário? Por outros termos: o “processo tributário” e o “processo civil” confundir-se-iam? Ou ainda: o “específico” (“processo tributário”) deixaria de ostentar esse predicado (da especificidade), passando a ser visto como “figura geral”?
Para todas essas questões, pensamos, a resposta é sempre a mesma: “não” – e por razão simples (que se recolhe das colocações anteriormente lançadas): fosse diferente, abriríamos mão da necessária instrumentalidade do processo (pondo em risco, por conseguinte, a igualmente necessária efetividade).
A sobreposição descuidada daqueles conceitos (“processo tributário” e “processo civil”), se manejada, implica, com efeito, a colocação dos conflitos tributários (explicáveis, assim o dissemos, pela noção de exigibilidade) e os relativos a outros setores materiais (trabalhista, previdenciário, consumerista, etc) debaixo de tratamento prêt-à-porter. O “processo” (que, nessa perspectiva, seria um só) seria operado independentemente do direito que lhe subjaz, frustrando-se, assim, as ideias sobre a qual nos debruçamos antes – instrumentalidade e efetividade.
2.6. A instrumentalidade do processo tributário no Código de Processo Civil de 2015
Se é correto dizer, por tudo quanto dito até aqui, que o Código de Processo Civil de 2015 seguirá servindo de esteio normativo para o “processo tributário” [como ocorre(ia) com o diploma que lhe antecede(u)], não é menos certo que a única forma de fazê-lo “tributariamente” instrumental (e efetivo) é seguir considerando-o em consórcio com o plano material de que cuidamos.
Conclusão: praticar instrumentalidade em relação ao “processo tributário” (garantindo-lhe potencial efetividade) significa, antes de tudo, atribuir ao estatuto processual geral sentido materialmente compatível com a realidade enfrentada.
Não será preciso muito esforço, de todo modo, para fazer cumprir esse ideal (de instrumentalidade): o novo Código facilita, e muito, a execução dessa tarefa, à medida que procura por fim ao divórcio entre “meio” e “mensagem”, “forma” e “conteúdo”, “processo” e “direito de fundo”. É o que se extrai, apenas a título de exemplo, dos dispositivos que seguem transcritos (em todos o que se vê, para além da técnica processual, é a preocupação com a questão de fundo):
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (…)
VI – dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito; (…)
IX – determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais; (…).
Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando: (…)
II – as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; (…).
Art. 332. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:
I – enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;
II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
IV – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
Art. 357. (…)
§3º. Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações.
Art. 488. Desde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria eventual pronunciamento nos termos do art. 485.
Art. 932. (…)
Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.
Embora não se veja explícita, em qualquer dessas passagens, a afirmação de que o processo deve ser conduzido em função do direito que lhe subjaz (única forma de se maximizar os resultados que dele se esperam), em todas há marcas que indicam aquele objetivo.
Mais do que prescrever técnicas, pensamos que o novo Código traz em suas dobras uma clara mensagem: porque instrumental, o processo deve ser visto (interpretado) na conformidade do direito de fundo.
2.7. Código de Processo Civil de 2015 + direito tributário = “Código de Processo Tributário”
Se o conflito de que trata o “processo tributário” decorre de uma obrigação de igual timbre (tributário), é natural supor que opere basicamente com um específico problema, o da exigibilidade (tal como assentamos pouco antes).
Embora a legislação que disciplina o nascimento, desenvolvimento e extinção da relação processual, por geral, não tome esses elementos em consideração, é fato que ela não os recusa, nem tampouco os afirma irrelevantes.
Se isso já ocorria (ou devia ocorrer) ao tempo do Código “velho”, mais ainda com o novo: como visto, esse diploma carrega a tinta na “questão” da efetividade-instrumentalidade, lembrando e relembrando que o processo não pode ser visto como um problema, mas como um meio de interferência eficaz na realidade. E se assim é, natural que o direito material subjacente ao processo seja o fiel da balança no momento da interpretação-aplicação da norma processual – é ele que recheará de sentido a norma processual, dando-lhe contornos concretos.
Não há, nessa medida, “um” Código de Processo Civil; há tantos códigos quantos sejam os setores materiais por ele servidos.
Sem medo, diríamos: o Código de Processo Civil, no campo tributário, pode e deve ser visto como “Código de Processo Tributário”, reconstruindo-se o sentido das normas ali postas para ajustá-las ao plano material de que se fala.
Essa é a instrumentalidade desejada (e imposta) pela nova lei – que abre efetivo campo para que assim tratemos o assunto.
2.8. O “antes” – o ambiente em que se assentou a produção do novo Código
Nos primeiros tópicos desse texto, falamos sobre a importância de tomar o Código de Processo Civil de 2015 como um fato a ser explorado em sua projeção histórica.
Observado esse sentido, repetiríamos: toda lei pode e deve ser vista como uma espécie de sintoma; ela, em si, não seria a representação direta (como se espelho fosse) do “problema” que gerou sua produção; como fato-sintoma, ela indicia a sua existência (do tal “problema”), dando-lhe estatura jurídica; o faz na intenção de que o intérprete-aplicador o componha.
Usando outros termos: se há norma que enfatiza uma dada situação, é de se presumir que essa tal situação foi “sentida” como um elemento debilitado.
Pois a renovação da legislação processual geral, com a introdução de uma série de categorias até então inexistentes, além de reafirmação enfática de outras, simboliza esse fenômeno. O legislador, é o que se deve presumir, detectou “problemas” no mundo real, os tomou como referência normativa, elevou-os ao plano jurídico e, ao final, lhes ofereceu uma “resposta”.
É o que se pode dizer, apenas para exemplificar, com relação ao dever de fundamentar os atos judiciais decisórios – a especificação de uma pauta tendente a fazer cumprir essa diretriz (desde antes estabelecida pela Constituição) revela que o que se fez até então não seria satisfatório.[7]
Já suficientemente explorado, nos tópicos precedentes, o problema da instrumentalidade (e, por consequência, o da efetividade) estaria sob o mesmo tratamento: o advento do novo Código seria expressão, por essa perspectiva, de um peculiar fato-sintoma: de que o processo está(ria) sendo tratado de modo a desconsiderar aqueles ideais. Daí a sobrevalorização de técnicas tendentes a maximizá-las.
Para compreendermos essas circunstâncias – muito mais históricas do que qualquer outra coisa –, pensamos que seja necessário recuar no tempo, pouco mais que dez anos, revisitando a época em que se projetou a reforma (constitucional) do Poder Judiciário – deflagrada pela Emenda 45.
2.9. Duração razoável do processo e “julgamento em cadeia”: dois dos principais elementos integrantes da reforma veiculada pela Emenda Constitucional 45
2.9.1. Duração razoável do processo
Um dos óbices mais óbvios à concretização da efetividade do Direito (notadamente o que se processualizou) é a inexorabilidade do tempo social.
Embora se constitua um problema prático, essa inexorabilidade é, no plano teórico, muitíssimo valiosa: ela reconfirma que o Direito, quando se fecha em suas abstrações, está fadado a ser um “nada”, que “nada” projetará, em termos de resultado, no mundo vivo; por outras palavras: ou o Direito (melhor dizendo, os seus operadores) aceita esse fato, reconhece sua pequenez diante do mundo real e passa a agir em conformidade com a dinâmica das coisas vivas (inclusive a temporal, repetimos), ou ele passará a habitar uma espécie de submundo, girando em torno de si mesmo.
A Emenda 45 deu um expressivo passo na detecção dessas circunstâncias, introduzindo, no texto magno, o chamado princípio da duração razoável do processo – primeira tentativa, no plano constitucional, de atribuir algum sentido deôntico ao problema da “inexorabilidade do tempo social” versus “o tempo do Direito”.
A despeito desse avanço, não se vê definido, na Constituição, o que é, objetivamente, “duração razoável”.
Esse “silêncio”, antes de criticável, expressa, com eloquência, a impossibilidade de afirmação de um conceito fechado de duração razoável do processo: o processo (ou melhor, o Direito) sempre foi (e deverá seguir sendo) instrumento; o seu tempo não é objetivamente desenhável, definindo-se, antes disso, pelas necessidades a que se dirige.
Não é possível dizer, portanto, que um dado processo, porque durou dez anos, é mais ou menos efetivo do que outro, que durou seis meses – e se o que durou seis meses foi extinto sem resolução de mérito?
O fato, de todo modo, é que a Constituição, renovada em 2004, passou a encarar de frente o problema anteriormente mencionado, da intangibilidade do tempo social vis à vis com o virtual fracasso da efetividade. Sua mensagem era (em retradução que nos permitimos fazer): embora não seja possível definir, genericamente, o que seja “duração razoável”, o processo não deve se estender para além desse ponto e o Judiciário deve zelar por isso.
No mesmo ensejo histórico, sabemos, foi criado o Conselho Nacional de Justiça, órgão integrante do Poder Judiciário, que passou, desde então, a recitar o quase-mantra da duração razoável; o fez, muitas vezes, por meio das chamadas “metas de julgamento”, preceitos de cunho administrativo, mas com claro sentido disciplinar, à medida que aplicados-controlados, no mais da vezes, pelos órgãos correicionais do Judiciário.
Ainda que por via indireta, a combinação desses fatores acabou transformando o que não estava objetivamente definido (o “tempo” constitutivo da ideia de duração razoável) em algo formalmente determinado.
Seria preciso, de todo modo, que essa definição formal fosse apetrechada por meios de execução; entra em cena, nesse momento, uma outra peça, importantíssima, também consagrada pela Emenda 45 (embora não tenha sido por ela criada): o que chamaríamos, aqui, de “julgamento em cadeia”.
2.9.2. “Julgamento em cadeia” como meio de atribuição formal de razoabilidade ao tempo de duração do processo
Embora não apareça, no texto constitucional, com essas palavras, essa forma de julgamento foi definitivamente incorporada em nosso sistema, com a introdução da figura da repercussão geral.
Dando legitimidade a providências que já se haviam incorporado no Código “velho”, a Emenda 45, via repercussão geral, consolidou a ideia de que lides “replicadas” (assim entendidas as que, conquanto se reportem a fatos distintos,[8] apresentam certa analogia factual, remetendo, no mais, a um mesmo suporte normativo – o que, sabemos, é muito comum em matéria tributária) poderiam ser julgadas, a bem das noções de isonomia e segurança, “em cadeia”.
Esse método aparelhar-se-ia, grosso modo, a partir de três providências: (i) alguns casos seriam eleitos como representativos da controvérsia; (ii) julgar-se-iam essas ações; (iii) repetir-se-ia o tratamento construído em relação às demais.
Pois bem, essa breve e descomprometida descrição é o que basta, pensamos, para que se perceba como os temas (este e o anterior, da duração razoável) dialogam: uma das formas de realizar, formalmente, a “duração razoável” parecia ser o julgamento nos termos adrede mencionados.
Para que assim se processassem as coisas, seriam necessários, porém, dois “cuidados” – um primeiro, relacionado à estruturação do precedente a ser usado nas lides replicadas; o outro, afeto à definição dos casos que se sujeitariam ao precedente.
2.9.3. Como a utilização da técnica do julgamento em cadeia, lançado na intenção de concretizar, formalmente, a duração razoável do processo, passou a oficiar contra a efetividade material
Pois foi justamente em relação a esses dois aspectos que o sistema como que titubeou.
Não raros, de fato, se mostraram os casos em que as Cortes responsáveis pela interpretação do Direito, mesmo diante do sugerido sistema de replicação de precedentes, passaram a apresentar soluções oscilantes – o que compromete(ia) a ideia de reprodução uniforme de resultados.
Por outro lado, para que o sistema operasse com a idealizada fluidez, seria necessário que as diferenças fáticas inerentes aos casos individuais fossem abandonadas o mais possível – quanto menos detalhes fáticos fossem avaliados, maior a possibilidade, uma vez reduzida a questão ao plano teórico-normativo, de aplicação, por reprodução, do precedente.
Não é preciso muito para notar que essa última circunstância, independentemente da primeira, pode, por si, aniquilar os ideais de instrumentalidade e de efetividade: processos individuais, formalizadores de conflitos que remetem ao plano (real) da facticidade, passara(ia)m a ser analisados, observados aqueles termos, em sua dimensão exclusivamente teórico-jurídica – uma das formas mais eficientes, repita-se, de por fim ao processo é toma-lo como veículo de debate de “tese”, resolvendo-o como tal; a existência de precedente que tenha tratado da “tese” dá a esse procedimento especial coloração, como que o legitimando, tudo de modo a facilitar a produção seriada de atos decisórios.[9]
No campo tributário, como ressaltado, o processo “fala” de um específico “problema” concretamente sensível – o da exigibilidade (potencial, efetiva, exaurida ou pendente), Não é seu objetivo “falar” da regra-matriz de incidência em si mesma considerada. Se assim procede o julgador, põe em evidente risco a efetividade que se espera do processo, o que se assoma quando o discurso é montado a partir de precedente inserido num repertório oscilante.
O processo assim administrado estaria apto a durar, formalmente, por “tempo razoável”, mas sem a necessária (e desejável) efetividade, o que abre espaço para os seguintes questionamentos: (i) o que a Constituição deseja é que o “processo” dure por tempo razoável ou que a “solução (efetiva) da lide” seja projetada em tempo razoável? (ii) Se o que se quer não é a mera solução do “processo”, mas sim do problema que a ele subjaz, é possível seguir “trabalhando” com repertórios de precedentes que oscilam indeterminadamente? (iii) Se o que se quer, insista-se, é um processo verdadeiramente instrumental e efetivo, é possível tomar o precedente como base motivacional direta do ato decisório sem que se explique em que medida os fatos (o do caso posto e o que foi abordado na produção do precedente) se ajustam?
2.10. A resposta oferecida pelo Código de Processo Civil de 2015
O novo Código (tomado, insistimos, não propriamente como obra normativa, mas sim como fato, implicado por diretivas históricas) oferece respostas claras a essas perguntas – o que serve para demonstrar (mais uma vez) que os “problemas” anteriormente apontados estão ali, no Código, sintomatizados.
2.10.1. Duração razoável do processo no Código de Processo Civil de 2015
Não temos dúvida, por todas as opções traçadas pelo novo Código – inclusive quando incorpora, textualmente, o princípio (constitucional) da duração razoável do processo –,[10] de que há, em sua implicitude, um conceito formulado(ável) para tal figura.
E esse conceito está, pensamos, diretamente conectado com os decantados ideais da instrumentalidade e da efetividade.
Um indicativo claro disso: há, no novo Código, regra que manda contabilizar prazos processuais em dias úteis, contrariando antiga tradição, que opera(va) com prazos “corridos”; não é possível pensar, com efeito, que o Código de 2015, com essa providência, esteja pensando no “tempo ordinário”, senão em extrair do processo o que dele deve ser materialmente extraído.
Por outros termos: é desejo do sistema que o processo garanta, tanto quanto possível, os resultados materiais impostos pelo direito de fundo; o “tempo do processo” há de ser, portanto, o “tempo” para a produção de uma decisão de mérito justa e efetiva – e não necessariamente o do calendário social.
Poder-se-ia dizer que, dessa visão, estariam sendo projetados, em lei ordinária, os limites de um princípio constitucional – ou por outra: que esse tipo de análise significaria a construção do sentido de um princípio constitucional pelo que em lei foi prescrito.
Recusamos essa objeção, mormente quando se a lança na intenção de rechaçar a proposta de definição de duração razoável.
As ideias de instrumentalidade e de efetividade – tão sobrevalorizadas no novo Código – têm, tanto quanto o princípio da duração razoável, igual estatura constitucional, conclusão que se chega não pela literalidade do texto máximo, senão por sinais por ele deixados. O mais eloquente, pensamos, está no art. 5º, inciso XXXV, expressão do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
2.10.2. “Julgamento em cadeia” no Código de Processo Civil de 2015
O novo Código não elimina, por conta dos problemas que registramos na parte final do item 2.9.3, as técnicas de julgamento em cadeia; ao contrário: as reforça, fazendo-o, porém, com notável destreza, na evidente intenção de contornar os percalços (sintomas) adrede sumariados.
Enxergamos, na lei de 2015, nítido desdobramento das duas faces fundamentais da jurisdição – uma primeira, de tom ordinário, responsável pela análise das questões fáticas; outra, extraordinária, responsável pela produção dos precedentes que, quanto às questões de direito, orientariam o exercício da jurisdição ordinária.
Sem que se considere amesquinhada uma ou outra dessas instâncias, cada qual cumpriria, no ideal dos julgamentos em cadeia do novo Código, um específico papel: (i) as extraordinárias dariam a palavra final no que se refere à interpretação do direito, sendo a orientação ali firmada de aplicação obrigatória pelos demais órgãos;[11] (ii) às ordinárias caberia avaliar se os fatos a que a lide remete coincidem com os que ensejaram a formação do precedente.
Essa forma de colocar a questão incorporada pelo Código de 2015 obsta dois extremos (indesejados): que os precedentes deixem de ser aplicados nos casos em que sua incidência seria imperativa (“nada”); que seu emprego seja prodigalizado (“tudo”).
Com isso, o Código sinaliza a existência de uma “ferida”, fixando várias regras “curativas”: (i) o precedente só pode ser tomado como base motivacional direta[12] se for de emprego efetivamente obrigatório, caso em que se retira do julgador ordinário a faculdade de eleger outra metodologia de julgamento; (ii) precedente de emprego obrigatório não pode oscilar, pena de se frustrar os ideais de segurança e isonomia; (iii) para aplicar ou negar aplicação a um precedente (mormente os convocados pelas partes), o juiz ordinário deverá aproximar (aplicação) ou afastar (negativa de aplicação), em sua projeção fática, o “caso a julgar” do “caso paradigma”. Vejamos os dispositivos que seguem transcritos:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
(…)
§ 2º. A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3º. Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4º. A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5º. Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1º. Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º. Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Art. 489. (…)
§ 1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2º. No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
§ 3º. A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.
2.11. O contraditório “superdimensionado” como instrumento a serviço da efetividade material do processo
Na intenção de maximizar a instrumentalidade-efetividade do processo, o novo Código faz uso de outra estratégia: potencializa o contraditório, inclusive no que se refere à aplicação de precedentes como base motivacional direta.[13]
Com isso, o Código de 2015 (i) reescreve o conceito de “questão de ordem pública” (sobre as quais a autoridade judicial falaria independentemente de provocação, mas não mais inaudita altera parte), (ii) assenta seu repúdio às “decisões-surpresa”, assim entendidas as que, por conta de pressuposta cognoscibilidade ex officio, tomam como fundamento elementos sobre os quais as partes não se pronunciaram, e (iii) mais do que tudo isso, redimensiona o papel das partes no processo de produção dos atos decisórios.
2.12. O novo “princípio” da cooperação (art. 6º do Código de Processo Civil de 2015) como contrapartida do contraditório maximizado
Em seu art. 6º, cuida o Código de 2015 de definir, como dever de todos os atores do processo, o de cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.[14]
A essa figura – que oficia, insistimos, como um dever de todos os atores do processo, inclusive as partes, Fisco e contribuinte, no processo tributário – se contrapõe o direito, sobre o qual falávamos, ao contraditório maximizado.
Natural: seria sem sentido material que o contraditório fosse franqueado para que as partes falassem, por exemplo, sobre prescrição, senão fosse para que, além de preservá-las de eventual “decisão-surpresa”, lhes fosse dado ensejo de trazer elementos (especialmente os de fato) que pudessem influenciar na construção de uma decisão efetiva.
Importância realçada terá o sobredito princípio, pensamos, na produção das decisões que se assentam em precedente. Para implementação prática dessa forma de julgamento, já vimos, é preciso que o caso a julgar coincida, em seu desenho fático, com o caso paradigma. Pois é das partes, antes de qualquer coisa, a tarefa de demonstrar analiticamente que o caso posto se aproxima (ou, se esse for seu interesse, se distancia) do que estaria por ser tomado como precedente.
Com efeito, embora o art. 489, parágrafo 1o, do novo Código, pareça colocar apenas nas mãos do juiz o encargo de identificar os fundamentos determinantes da adoção ou da rejeição do precedente (pena de se considerar não fundamentada sua decisão), é certo dizer que, num sistema de inércia como o nosso,[15] é das partes o ônus de expor, analiticamente, a (in)aplicabilidade do precedente.[16]
E assim é ainda mais evidente, se se considerar que, com o contraditório superdimensionado do novo Código, convive o dever de cooperação.
3. Sobre a “crise” do contencioso administrativo tributário federal de 2015
Além do advento do novo Código de Processo Civil, o ano de 2015 nos confrontou com uma série de circunstâncias que implicaram a “suspensão” do CARF e a subsequente tentativa de reorganização do órgão.
Com a adicional debilitação das contas públicas – decorrência de pronunciada crise política e econômica –, acabou que muitas manifestações tendentes a colocar em xeque a função do contencioso administrativo tributário foram (e seguem sendo) produzidas.
A par das oportunidades de avanço desenhadas pelo novo Código de Processo Civil, algumas dessas manifestações, se admitidas, implicam o parcial comprometimento do sistema, com evidente repercussão sobre o direito tributário – lembramos, nesse particular, das proposições que fixamos nos itens 2.4 a 2.7, construídas na intenção de enlaçar, a partir das noções de instrumentalidade e de efetividade, a figura do “processo tributário” com a do próprio “direito tributário”.
3.1. O papel desempenhado pelos órgãos integrantes do contencioso administrativo tributário – inclusive o CARF
No exercício de suas funções, o CARF (e todos os órgãos que integram o contencioso administrativo tributário) opera debaixo de um pressuposto: a constituição do crédito tributário.
O efeito pragmático derivado da constituição do crédito tributário – reconhecível pela expressão “exigibilidade efetiva” (tal como assinalado no item 2.4) – fica suspenso até o esgotamento da função julgadora de que é titular o referido órgão.
Na prática, a suspensão da exigibilidade do crédito que é levado a reexame ao órgão julgador traz a impressão de que ele, o crédito, encontra-se inacabado, como se em formação ainda estivesse.
Não é função do CARF, nem de qualquer órgão administrativo de julgamento, constituir (ou reconstituir) crédito(s) tributário(s). Não o faz nem objetiva (quantum), nem subjetivamente (definição de sujeição passiva). A tarefa de constituir o crédito tributário é da autoridade administrativa detentora de competência para tanto, esgotando-se com a emissão do ato administrativo correspondente (Código Tributário Nacional, art. 142) e a subsequente notificação do sujeito passivo identificado como tal.
Num Estado que se pretenda democrático, é natural supor que o efeito prático que se quer extrair do ato administrativo de lançamento (o pagamento) não seja “imposto” de forma pura, simples e direta. Assim fosse, pressuporíamos um quê de “infalibilidade administrativa” – algo inadmissível, ao menos quando se pensa, por premissa, num Estado Democrático de Direito.
Por isso, entre a constituição do crédito e o resultado prático esperado supõe-se a figura intercalar (e contingencial) da “impugnação administrativa”, instrumento por meio do qual o contribuinte contrasta a presunção (relativa) de legitimidade do crédito constituído, postulando que a autoridade administrativa julgadora (“julgadora”, frise-se, não “lançadora”) avalie as razões então trazidas a contexto – tendentes, por lógica, a romper, total ou parcialmente, objetiva ou subjetivamente, a exigibilidade imanente do crédito.
Do exercício de suas funções, o CARF não promove a arrecadação, não pelo menos como finalidade; pragmaticamente, é possível (não se nega) que o julgamento dos recursos que transitam pelo órgão pode gerar esse resultado; mantido o ato administrativo e desde que esgotados os meios recursais cabíveis, cessa o estado de suspensão de exigibilidade, com o consequente recrudescimento da imposição de pagamento, pena de caracterização do desvalor do inadimplemento (premissa para a deflagração, se o caso, do processo tendente à expropriação do patrimônio do contribuinte).
Essa contingente eficácia (ensejadora da imposição do pagamento), justamente porque contingente, não basta para identificar a função do CARF – e o mesmo vale dizer, insistamos, em relação a qualquer órgão administrativo julgador. Além de supor o reverso – pode que os recursos que transitam pelo órgão sejam julgados a favor do contribuinte, o que, quando menos potencialmente, pode implicar a extinção do crédito tributário (Código Tributário Nacional, art. 156, inciso IX) –, é preciso pensar que o que faz disparar o exercício das funções do CARF não é a intenção de arrecadar (o que estaria desde antes assentado com a emissão do ato administrativo preexistente), mas sim a impugnação originalmente ofertada pelo sujeito passivo, aquele em desfavor do qual se impõe a exigibilidade, na óbvia intenção de rompê-la.
Nessa lógica, os órgãos administrativos de julgamento não confirmam nem infirmam o crédito tributário – como se sua existência dependesse desse tipo de “chancela” –, senão se a impugnação procede ou não (do que decorre, aí sim, a manutenção ou não da exigibilidade).
É impensável que a potencial repristinação da exigibilidade, ainda que desejável pelo Fisco, seja por ele tomada como propósito do órgão julgador: além de encobrir sua razão de ser, essa visão descaracteriza o julgador administrativo, colocando-o sob a indevida condição de longa manus do agente lançador, como se o crédito tributário estivesse sendo por ele constituído.
3.2. O processo administrativo tributário no Código de Processo Civil
É inevitável, por essas premissas, que se enxergue nos órgãos administrativos de julgamento o exercício de função atipicamente jurisdicional, algo sobre o quê parece que ficaríamos discutindo pela eternidade, dado o notório confronto de posições a propósito do tema.
Parece, a despeito disso, que o Código de Processo Civil de 2015 fez sua opção, tomando como efetivamente jurisdicional a atividade desempenhada pelos órgãos administrativos de julgamento, nesse conceito inseridos, por óbvio, os que integram o contencioso tributário.
Num mesmo capítulo (o II, integrante do Livro I, pertinente à sua “Parte geral”), o novo Código estipula regras pertinentes à “aplicação das normas processuais”, fazendo um interessante link: no art. 13 assevera que a “jurisdição” (civil)[17] é regida pelas normas processuais;[18] no art. 15 prescreve, por outro lado, que, na ausência de normas (processuais) reguladoras do processo administrativo (além do eleitoral e do trabalhista), suas disposições (a do Código) devem ser aplicadas supletiva e subsidiariamente.[19]
Vale dizer: reconhecendo, primeiro, que “jurisdição” é atividade que se exerce a partir de “normas processuais”, e, segundo, que o processo administrativo é instrumento regido por normas desse timbre, o Código acaba por vincular os dois conceitos, o de “jurisdição” e o de “processo administrativo”, autorizando, por conseguinte, a conclusão: a segunda figura (a do processo administrativo) é expressão da primeira (jurisdição).
Reafirmaríamos, com isso: os órgãos de julgamento integrantes do contencioso administrativo tributário exercem, no desempenho de suas funções, atividade jurisdicional, e não propriamente administrativa; longe de (re)constituírem o crédito tributário administrativamente debatido, eles examinam a pretensão deduzida no instrumento de provocação que os impulsiona a agir (no mais das vezes, produzido pelo contribuinte). Sua atividade, antes de vinculada à arrecadação (nada tendo, portanto, com a noção de “cobrança”), é marcada pela premissa da antiexacionalidade.
É certo, por óbvio, que essa “jurisdição administrativa” não experimenta as mesmas características da “jurisdição judicial”; fossem sobrepostas em todos os seus aspectos, seria sem sentido distingui-las. Não obstante isso, é de jurisdição, definitivamente, o que se tem num e noutro âmbito.
Daí, ao cabo de tudo, a opção traçada pelo Código de Processo Civil de 2015 (absolutamente legítima, em nosso ver) no sentido de vincular o processo administrativo às suas regras, supletiva ou subsidiariamente, conforme o caso.[20]
Possível dizer – e assim parece ficou muito claro com o Código de Processo Civil de 2015 – que, a despeito da pluralidade de órgãos exercentes de jurisdição (algo típico dos regimes em que voga a noção de interpenetrabilidade das funções estatais), não é dado distinguir, ontologicamente, a função por cada qual exercida. Não é menos jurisdicional a atividade do CARF só porque sua posição orgânica não nos leva ao Poder Judiciário; por isso é que, no exercício de sua “jurisdição”, deve esse órgão servir-se, e assim todos os outros, das regras processuais apostas no Código de Processo Civil de 2015, fazendo-o, no específico caso desse órgão, subsidiariamente.[21]
3.3. Sobre a reorganização, pós crise, do CARF
Tomadas essas premissas – a partir das quais, apontamos para a submissão do CARF, mesmo que subsidiariamente, ao novo Código –, podemos (e devemos) reconhecer: o legislador responsável pela emissão das normas reguladoras dos processos que ali (no sobredito órgão) transitam não está absolutamente livre; se o processo administrativo é expressão da função jurisdicional, as normas que o disciplinam devem guardar conexão, tanto quanto as do Código de Processo Civil, com os valores e técnicas que definem o sentido do “devido processo legal” – contraditório, ampla defesa, acesso à instrução, recorribilidade, segurança jurídica, previsibilidade, entre outras.
Vale dizer: mesmo que a hipótese concretamente considerada seja a de subsidiariedade, o Código de Processo Civil não pode ser negligenciado; técnicas foram por ele incorporadas, assim vimos, com a nítida intenção de “realizar”, de “pragmatizar”, valores inerentes ao “devido processo legal”; é indiferente, pois, se tais técnicas não constam da legislação que rege o processo administrativo local – o silêncio, nessa hipótese, não é eloquente.
Tomemos um exemplo. Quando o Código de Processo Civil, por seu art. 10, veda a emissão de “decisão-surpresa”, potencializa, por conseguinte, a noção de contraditório, valor inegavelmente vinculado ao “devido processo legal”. Mesmo que essa “nova” forma de ver o contraditório (maximizando-o, superdimensionando-o) não esteja expressa na legislação que rege esse ou aquele processo administrativo, é impositiva sua aplicação também nesse âmbito, por força subsidiária.
Conclusão: o silêncio da legislação – que trata (ou venha a tratar) do processo administrativo – em relação a determinadas técnicas trazidas pelo Código de 2015 não tem, em princípio, nenhum significado; não serve (esse silêncio) para de forma alguma recusar a aplicação do Código ao ambiente administrativo.
E isso, mais do que os apelos arrecadatórios que o momento de debilidade das contas públicas suscita, deve ser necessariamente considerado.
De outro modo, aquilo que era para ser “filtro” deixará de oficiar como tal, empobrecendo o sistema de que faz parte o CARF – assim como todos os outros órgãos administrativos de julgamento.
4. Palavras finais
Se é possível enxergar, com o novo Código de Processo Civil, uma espécie de aclaramento dos papeis desempenhados pelos órgãos judiciais ordinários e extraordinários, notadamente para fins de aplicação das técnicas de julgamento em cadeia (por força de precedente), desenha-se, por conseguinte, evidente expectativa de avanço em termos de efetividade (material). Tudo fruto (i) da revelação da importância que os juízos ordinários têm para a manutenção do sistema (eles respondem, lembre-se, pelo relevantíssimo papel de definir se a “hipótese fática” submete-se, ou não, aos precedentes vinculativos), e (ii) da imposição do dever de construção dos tais precedentes (os de caráter vinculativo) com desejável sentido de “permanência”.
Sincretizados, os sistemas processual e tributário (material) passariam a conferir, em conjunto considerados, parâmetros seguros de conduta extraprocessual, impeditivos da deflagração de novas lides – afinal de contas, o sentido de “permanência” a que nos referimos, embora não seja intocável, é premissa, pelo novo Código, para que o precedente oficie vinculativamente. Outro aspecto em que as expectativas são positivas.
Resta a dúvida, a par dessas ideias, sobre como os órgãos administrativos de julgamento – notadamente o CARF – vão se comportar diante de mensagens como as deixadas pelo novo Código em seus arts. 10 (contraditório maximizado), 489, parágrafo 1o (dever de fundamentação) e 927 (aplicação obrigatória do precedente). Mais ainda: como, com o novo Código, o julgador administrativo se enxergará: como exercente de função jurisdicional ou administrativa?
Pensando bem pragmaticamente, cremos que a resposta a essas dúvidas dará o exato tom a partir do qual o capítulo da crise do CARF se fechará. Observada a estrutura que tentamos apresentar no item 3.1, teríamos um resultado; caso contrário, o “filtro” proporcionado pelo processo administrativo deixaria de existir, com o consequente inflacionamento do fenômeno da judicialização – seja por iniciativa do contribuinte (por meio de ações repressivas), seja por iniciativa do Fisco (via execução); numa ou noutra hipótese, efeitos (reais) seriam sentidos em curtíssimo espaço de tempo, já que as discussões judiciais nem sempre propiciam a automática suspensão da exigibilidade do crédito tributário – efeito cuja verificação dependeria, não raro, do oferecimento de garantia do cumprimento da obrigação tributária. Se isso, no plano das abstrações do Direito, faz algum sentido, pode, a depender do “tamanho” do crédito, que, no plano das coisas do mundo vivo, nenhum sentido se apresente.
E é aí, nesse momento, que se reforça nossa expectativa de que os órgãos integrantes do contencioso administrativo tributário (em especial, o CARF) (i) passem a se ver, definitivamente, como exercentes de função jurisdicional, (ii) sigam submetendo-se às diretivas fixadas pelo novo Código e (iii) exerçam, em harmonia com o “novo” Judiciário desenhado por aquele diploma, o papel de que lhes cabe – o de dizer se a exigibilidade “confrontada” deve ou não se realizar.
Sem pretender esgotar (por óbvio) os aspectos virtuosos que são recolhíveis do Código de Processo Civil de 2015 e os que afloram, naturalmente, de momentos de crise como a que se configurou no contencioso administrativo, concluímos esse texto destacando que a maior das virtudes de um e outro desses fatos (o do surgimento do novo Código e o da “crise” do CARF, reitere-se) é a sua força provocadora, algo sobre o quê todos devemos falar, em especial para que não se feche, sem resultado, a janela de oportunidades que nos foi aberta, especialmente para o fim de reescrever o destino do “direito-processo” tributário brasileiro.
Paulo Cesar Conrado
Juiz Federal em São Paulo. Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP. Professor no IBET, na PUC/SP e na FGV-Direito/SP.
Coordenador do grupo de estudos e do curso de extensão “Processo Tributário Analítico” (IBET). Autor da obra “Execução Fiscal”, 2ªed./2015, publicada pela Noeses.
[1] O processo apenas segue o fluxo, operando com a ideia de instrumentalidade em segunda potência (talvez por isso, por conta dessa potência assomada, é que sua instrumentalidade sempre esteve em destaque).
[2] O processo, instrumento em segundo grau, serve ao Direito e o socorre (ou deveria socorrer) naquilo que ele (o Direito) não logra obter pela ação voluntária de seus destinatários.
[3] Usamos a expressão “vida social”, aqui, em sentido bem amplo, na intenção de designar o extrajurídico, campo sobre o qual o Direito tende a irradiar seus efeitos, impondo as condutas que deseja sejam verificadas.
[4] Dois, fundamentalmente: o lançamento de ofício e a declaração do contribuinte.
[5] As três primeiras fases expressam a ideia de antiexacionalidade (os processos a elas relacionados demandam atuação provocativa do contribuinte); a quarta, a de exacionalidade (o processo a que remete é iniciado por provocação do Fisco).
[6] Nem mesmo as chamadas execuções fiscais (figura que se ocupa da “exigibilidade pendente”) compromete essa afirmação: a Lei n. 6.830/80, diploma que cuida do assunto, transcende, sabemos, a matéria tributária, não tendo sido construído para atendê-la.
[7] Art. 489. (…)
§ 1.º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
[8] Nesse momento, pedimos desculpas pela redundância: os fatos a que se reportam duas lides individuais (inclusive no plano tributário) são sempre distintos; ostentam, quando muito, alguma analogia.
[9] Problema que, em direito tributário, se “engrandece”; vale reforçar: as obrigações tributárias, embora constitutivas de realidades individuais, assentam-se em premissas normativas comuns.
[10] Art. 4º. As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.
[11] O art. 927 do novo Código aponta os precedentes que teriam tal força, ampliando visivelmente o quadro até então existente.
[12] “Base motivacional direta”: lançamos essa expressão para diferençar a posição tradicionalmente assumida pela jurisprudência na operação decisória – a saber, de elemento mediato da formação da convicção judicial.
[13] Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
[14] Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
[15] Art. 2º. O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.
[16] Por demonstração analítica, entendemos a que se assenta no confronto do arcabouço fático dos casos geradores do precedente com o arcabouço fático que recheia a demanda a ser julgada.
[17] Assim entendida, por exclusão, a de conteúdo não penal.
[18] Art. 13. A jurisdição civil será regida pelas normas processuais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte.
[19] Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
[20] Tal providência, para bem além de compor o dissídio (até aqui, parece-nos invencível, eterno) firmado sobre a natureza jurídica da atividade desempenhada pelos órgãos administrativos julgadores, homenageia, com ênfase, a Constituição.
O modelo constitucional de processo, com efeito, não distingue, em sua perspectiva funcional, CF, como sabido, assim prescreve:
Art. 5.º. (…)
(…)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (…).
[21] Quando se fala em subsidiariedade, pressupõe-se alguma regulamentação, ostentando o Código de Processo Civil de 2015 função “normativo-complementar”. Esse é o caso em que se assenta o CARF.