Desde o advento da Lei Complementar nº 104/01, vigora na legislação tributária norma que possibilita à autoridade administrativa desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do “fato gerador do tributo” ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Catorze anos após a instituição referida norma, a Medida Provisória nº 685/15 institui procedimento administrativo que pode vir a cumprir a função prevista no referido ato normativo.
Segundo sua exposição de motivos, a nova declaração vem para atender ao Plano de Ação sobre Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros (Plano de Ação BEPS, OCDE, 2013), que tem como finalidade “desenvolver um plano de ação para resolver a erosão da base tributária e a transferência de lucros de maneira coordenada e abrangente”.
De fato, a ação 12 do referido plano é “exigir que os contribuintes revelem os seus esquemas de planejamento tributário agressivo”, proporcionando ao Fisco informações dinâmicas sobre os planejamentos tributários praticados pelos contribuintes, o que viria a ser concretizado pela nova declaração. Mas, além disso, a exposição de motivos da Medida Provisória também indica como objetivo a obtenção de segurança jurídica “no ambiente de negócios” e “evitar litígios desnecessários”. Teremos como foco, nesse artigo, refletir até que ponto esses dois últimos dispositivos são atendidos com a redação apresentada por tal ato normativo.
Pois bem. Segundo o artigo 7º da referida Medida Provisória, deve ser entregue até 30 de setembro de cada ano, a declaração por parte do contribuinte, do conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem a supressão, redução, ou diferimento de tributo quando (I) os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes, (II) a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico e (III); tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Na hipótese de a Secretaria da Receita Federal do Brasil desconsiderar, para fins tributários, as operações declaradas, o sujeito passivo será intimado a recolher ou a parcelar, no prazo de trinta dias, os tributos devidos acrescidos apenas de juros de mora. Entendemos que tal previsão proporciona segurança jurídica, na medida em que o contribuinte poderá dar curso ao planejamento tributário sem enfrentar, a priori, a insegurança de se sujeitar a multas elevadas, como, por exemplo, 150% (cinquenta por cento).
Outro aspecto que julgamos positivo é a possibilidade de o sujeito passivo relatar atos ou negócios jurídicos ainda não ocorridos. Nesse caso, a declaração será tratada como consulta à legislação tributária, nos termos da legislação vigente, o que nos parece positivo.
Agora, caso o sujeito passivo tributário descumpra seu dever de apresentar a declaração, ficaria caracterizada omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa de 150% (cento e cinquenta por cento).
Nesse ponto, tenho visto preocupação acentuada entre militantes e estudiosos do direito tributário, pelas razões que passo a explicar.
Como visto anteriormente, uma das hipóteses de apresentação da declaração é a prática de ato sem propósito extratributário relevante. Agora, a atribuição da relevância, ou não, do propósito negocial, exige julgamento com boa dose de subjetividade.
Ora, se o contribuinte entende que o ato praticado ostenta propósito negocial relevante, não deveria, salvo se preenchida outra hipótese prevista pela Medida Provisória nº 685/15, declarar ao Fisco tal declaração. Mas, quem garante que a administração pública, em fiscalização, não interprete que tenha havido omissão em razão da ausência de declaração, prevendo as sanções acima indicadas? Nesse caso, o contribuinte poderia ser acusado, até mesmo, de crime contra ordem tributária por sonegação.
Suponhamos, então, que, na dúvida e por prudência, o contribuinte opte por declarar a referida operação. Nesse caso, ao reconhecer que a transação não ostenta propósito extratributário relevante, o Fisco teria argumentos para desconsiderar tal planejamento tributário, com difícil discussão. Em suma, o contribuinte praticamente fica limitado quanto ao seu direito de ampla defesa, atribuindo uma qualificação a uma operação que ele mesmo não concorda, em razão da ameaça de ver configurada a prática de sonegação fiscal.
Outro ponto de atenção refere-se ao fato de que a declaração (I) apresentada por quem não for o sujeito passivo das obrigações tributárias eventualmente resultantes das operações referentes aos atos ou negócios jurídicos declarados, (II) omissa em relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico (III) que – contiver hipótese de falsidade material ou ideológica, (IV) será considerada ineficaz e poderá acarretar a aplicação de multa de 150% (cento e cinquenta por cento).
Chamamos atenção, nesse aspecto, para as dificuldades de interpretação do planejamento tributário. Litígios poderão surgir por discordância entre Fisco e contribuinte sobre o alcance e qualificação jurídica das operações, contribuindo para um clima conflituoso entre contribuinte e administração pública.
Nesse contexto, parece-nos que se o objetivo é a busca da segurança jurídica e se evitar litígios tributários, seria relevante uma modificação no texto da Medida Provisória, para que sejam retirados todos os pontos que contribuam para a subjetividade na aplicação de suas disposições, gerando uma nova insegurança que certamente contribuirá para deprimir, ainda mais, o “ambiente de negócios no país”.
Nosso sistema tributário é reconhecidamente complexo e constantemente se fala em reforma tributária, visando a simplificação. Mas a todo momento que se apresenta uma mudança legislativa, a dificuldade de sua aplicação aumenta. Eis uma excelente oportunidade do legislador, aproveitando-se da interessante ideia de se proporcionar ao contribuinte a oportunidade de informar planejamento tributário sem incorrer em multas, eliminar pontos de dúvidas e conflitos, ao invés de tornar, ainda mais difícil, a observância das normas tributárias brasileiras. Caso ajuste de tal calibre seja feito, somos otimistas que o novo regramento efetivamente contribuirá para gerar maior segurança jurídica.
*Charles William McNaughton é Mestre e Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP. Professor da PUC-SP e do IBET. Autor da obra “Elisão e Norma Antielisiva: Completabilidade e Sistema Tributário”, publicada pela Editora Noeses.
Jota-30/07/2015.