Abordar o tema “preço de transferência” é sempre desafiante, quer pela complexidade, quer pela escassez de produção acadêmica sobre um assunto tão relevante no trato das questões tributárias dentro de corporações transnacionais.
Creditamos essa convivência sem grandes traumas à forma como a legislação brasileira dispõe sobre a questão, atribuindo-lhe contornos de um ajuste de demonstrações contábeis para demonstrações fiscais, sem longos aprofundamentos sobre o fundamento de validade das normas que estabelecem que transações entre partes relacionadas devem ser praticadas sob as regras de mercado aplicáveis entre partes não relacionadas.
O instituto dos “preços de transferência” no Brasil cuida de materializar regras para o cálculo do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, prescrevendo ajustes sempre que houver excesso de dedutibilidade de despesas ou pouca receita tributável.
Reconhecemos as normas relativas aos preços de transferência como normas que compõem o conjunto de proposições jurídicas que prescrevem a forma de apuração do lucro das pessoas jurídicas.
E, neste ponto, o direito comparado faz-se importante, visto que poucos temas são tão diversos em outros ordenamentos jurídicos quanto à forma que as Autoridades Fiscais utilizam para zelar pela manutenção da renda tributável pelo imposto sobre ela incidente.
Há uma forte cultura de que os institutos são próximos, como se houvesse uma “tradução” daquele modelo OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), por parte das normas brasileiras, o que, de fato, não é verdade.
Isso porque a OCDE possui um modelo estruturado sobre o assunto, com diretrizes a serem seguidas pelos países signatários. Muitos sustentam que o Brasil não segue o “modelo” da OCDE por não ser membro da organização; no entanto, acreditamos que o modelo brasileiro é muito adequado ao perfil tanto do Fisco Nacional quanto dos contribuintes.
Trabalhando com ambos os modelos, é possível perceber que não haveria espaço, no Brasil, para normas com uma carga de subjetividade tão forte quanto ao modelo de cálculo de preços de transferência no regime OCDE.
O contato com a experiência em países que legislam no sentido das diretrizes da OCDE possibilita uma compreensão ampla do tema e a certeza de que, independentemente de ser uma questão de tempo e evolução das relações “Fisco x contribuintes”, o perfil das normas de preços de transferência no Brasil é harmônico e coerente com as demais normas do sistema, o que quer dizer que, analisando a fundo o tema e trabalhando com ele no Brasil e em países de modelo OCDE, não é possível imaginar que aquela estrutura fosse aplicada aqui com sucesso; não da forma como se portam contribuintes e Fisco no Brasil: como rivais.
Ademais, a aplicação de princípios como legalidade e outros dele decorrentes, como tipicidade e vinculação do ato administrativo, da forma como prevê nosso ordenamento jurídico, não permitiria a aplicação de uma legislação com tipos “abertos” como aqueles previstos no modelo OCDE.
Portanto, nessa oportunidade, tentaremos trazer um pouco de ambas as estruturas de normas sobre preços de transferência – Brasil e OCDE; analisaremos sucintamente cada uma delas; e discorreremos sobre as aplicações e implicações práticas da utilização de cada um dos métodos, dentro das respectivas previsões legais.
É importante, no entanto, ter em mente que o instituto “preço de transferência”, embora tenha a mesma denominação no Brasil e nos países com modelo OCDE, é instituto muito distinto, que compõe conjunto de normas diferentes.
Faz-se necessário ainda esclarecer que este texto tem como intuito trazer uma abordagem dissonante do tema, no sentido de caminhar para a construção de normas que fixam preços artificialmente, discordando, portanto, das teorias dominantes no sentido de que preço de transferência é uma busca pelo princípio arm’s length, que fundamenta o modelo OCDE.
Partimos da premissa de que preço de transferência é o conjunto de normas que, junto com outras do ordenamento jurídico, compõem a forma de cálculo do imposto sobre a renda na modalidade “lucro real”.
Trata-se de um dos elementos de apuração do imposto, assim como outros, como normas de subcapitalização e todos os “ajustes” que decorrem da passagem do balanço societário, em IFRS, para o balanço fiscal, que será base de cálculo para o imposto sobre a renda. Trataremos também de elucidar a nova estrutura de “balanços” no Brasil, após a extinção do chamado “RTT” (Regime Tributário de Transição).
Entendemos ainda que nos aprofundarmos nos métodos de cálculo desvirtuaria o intuito deste texto, que se limita a colocar sob análise uma outra perspectiva sobre o tema, que deriva do abandono da ideia de que o preço de transferência, como conjunto de normas, tenta reproduzir condições de mercado para fixar valores “reais”, praticados por partes independentes, em semelhantes condições de mercado.
O objetivo desse conjunto de normas é muito mais simples: compor a base de cálculo do imposto sobre a renda. E é dentro dessa premissa que o raciocínio se desenvolverá.
Como qualquer tema, não é possível esgotá-lo nem temos pretensão para tanto, mas certamente será possível compreender melhor as sistemáticas teóricas e práticas de um mesmo instituto, tão diferente no Brasil e no resto do mundo. Vamos tentar, ainda, fugir das discussões reiteradas sobre o tema, focando nas questões que entendemos relevantes para uma abordagem técnica sobre a questão.
Vivian de Freitas e Rodrigues de Oliveira
Sumário Preços de Transferência