Vivian de Oliveira é a autora deste trabalho sobre “preços de transferência”. Em texto denso, inspirado por sua ótima e bem vivida experiência profissional, articula enunciados e constrói um discurso homogêneo, cheio de observações agudas, a ponto de despertar, na mente de quem lê, o vivo interesse por assunto de aparência tão técnica e complexa. Esse aspecto confere ao escrito dimensão diferente de outras manifestações doutrinárias a respeito da matéria. Ela mesma o confessa, dizendo que a ideia de escrever sobre o tema adveio da necessidade de conjugar os desafios da carreira com os obstáculos e as superações da vida acadêmica, tendo em vista a elaboração de sua tese de doutoramento.
Com efeito, organizar proposta doutoral é algo que supõe planejamento, concentração e, principalmente, longo período de preparação teórica. E Vivian assim o fez: dedicou-se à pesquisa, formulando premissas e estruturando a argumentação para cumprir, um a um, todos os créditos exigidos pelo Programa, porém de maneira peculiar, pois se encantou com o giro linguístico, com as reflexões de Vilém Flusser, com as incomparáveis lições de Lourival Vilanova, imergindo totalmente nos parâmetros do método conhecido por Constructivismo Lógico-Semântico. Creio que foi nesse espaço que pavimentou o projeto de associar tais categorias às contingências práticas que a atividade diária incessantemente propõe, provocando reações rápidas em sentenças fulminantes de decisão. Todos nós, a qualquer momento, temos que decidir, mas na vida profissional tais participações são medidas incisivas e inevitavelmente avaliadas em função de objetivos anteriormente estipulados. Não há condições para consultas mais demoradas, no feitio de meras reflexões. É justamente nessa perspectiva que uma formação intelectual mais apurada faz a diferença: aquele que tenha conhecimentos aprofundados, conceitos bem elucidados, linha de pensamento que deslize com fluência e naturalidade por um eixo estável, apoiado em proposições aptas para suportar a progressão do raciocínio; este, tenho inteira convicção, chegará a bom termo e suas conclusões serão notadas, anotadas e reconhecidas.
É precisamente o caso da Autora. Em momento algum separou sua conduta profissional da importante sustentação teórica que adquiriu ao superar as exigências do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC/SP, satisfeitas, aliás, em trajetória firme, decidida, ultrapassando as dificuldades normais da vida em família, bem como as vicissitudes inerentes ao ambiente de trabalho, com as turbulências naturais que sabemos existir. É, realmente, um percurso difícil!
Analisando seu trabalho e, obviamente, honrado pelo convite de prefaciá-lo, direi que parte das premissas da filosofia da linguagem e do giro linguístico tem como objetivo ordenar o raciocínio de tal modo que se possa reconhecer estarmos diante de norma, como tantas outras, prescritora da forma de apuração do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, na modalidade chamada “lucro real”. O escrito passa pela consideração das políticas de preços de transferência nos modelos da OCDE, como maneira de demonstrar que há consistência entre aquilo que o contribuinte deve provar à autoridade fiscal e o princípio “arm´s lenght”, sempre com o acento crítico de quem lê, interpreta e compreende o direito posto, para poder falar sobre ele em nível de metalinguagem. É preciso esclarecer que a consideração é sumária, redutora de complexidades, para tornar possível surpreender a mensagem em sua expressão mais simples.
No Brasil, a norma de preços de transferência nada mais é do que ficção jurídica sobre a qual há ajuste entre os preços registrados em termos contábeis, efetivamente praticados pelas partes relacionadas, e aqueles que serão objeto de incidência, na composição do chamado “balanço fiscal”, base de cálculo do imposto sobre a renda.
O estudo evolui para a conclusão inevitável de que se trata de norma inconstitucional, na medida em que tributa com base em ficção jurídica. A regra brasileira não reflete e não busca refletir sobre as condições de mercado, a fim de que haja manutenção de tais condições nas relações comerciais entre as partes envolvidas. Na verdade, o modelo brasileiro, por meio de fórmulas matemáticas, fixa lucratividades mínimas e dedutibilidades máximas para obter a apuração do imposto sobre a renda, o que representa apenas uma acomodação entre o lucro contábil e o lucro fiscal. O raciocínio desenvolvido pressupõe o entendimento de como a linguagem do direito tributário dialoga com a linguagem da contabilidade, considerando que são sistemas distintos que se conectam quando a linguagem do direito tributário, fazendo as vezes de metalinguagem, refere-se à linguagem da contabilidade, na condição de linguagem objeto, tomada como ponto de partida para o cálculo do que o sistema do direito entende como variação de patrimônio tributável pelo imposto sobre a renda.
É necessário lembrar que entre os pressupostos adotados, as normas relativas aos preços de transferência são tidas como aquelas que compõem o conjunto de proposições que prescrevem a forma de apuração do lucro das pessoas jurídicas.
O livro discute assunto da maior atualidade. Sua compreensão depende da análise de momento especial vivido pelo Brasil, com a implantação, ainda que parcial, do IFRS e a separação e independência do direito tributário em relação à contabilidade, passando pelo nascimento e extinção do chamado “RTT – Regime Tributário de Transição”, processo que culminou com a publicação da Lei nº 12.973, em 2014, marco importante para a história da experiência jurídica brasileira e relevantíssimo no horizonte profissional dos interessados.
Ora, o texto da Professora Vivian de Oliveira, além de coeso e instigante, vazado num Português de alto padrão técnico-jurídico, tem fundamentos científicos sólidos e mantém-se numa linha filosófica que pode ser identificada do começo ao fim. Isso é tudo o que se espera de uma tese de doutorado que se pretenda séria, profunda e, ao mesmo tempo, accessível a quantos se proponham ler e atingir o conteúdo de seu pensamento. Julgo não me exceder, salientando que, nesta obra, faz-se presente aquilo que a Filosofia do Conhecimento proclama como o ideal do saber: a intersecção entre a teoria e a prática; a ciência e a experiência.
É uma satisfação acompanhar a trajetória de alguém, como Vivian, que enfrenta as dificuldades, aceita as condições muitas vezes adversas do ambiente acadêmico, e as suplanta com vigor e serenidade, obtendo, com todos os méritos, o tão importante grau de doutora em direito.
Estão de parabéns, portanto, a Autora, a Instituição que lhe outorgou o título e a Editora Noeses, pela oportuna edição desta obra.
São Paulo, 28 de março de 2015.
Paulo de Barros Carvalho
Professor Emérito e Titular da PUC/SP e da USP