APRESENTAÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO: A retórica realista que propus na primeira edição deste livro – e que veio sendo construída em outros anteriores – baseia-se em três teses básicas, todas pensadas em oposição a perspectivas prevalecentes na cultura ocidental contemporânea, no que diz respeito à retórica e à filosofia geral; inspiradas no filósofo cético helenista Sextus Empiricus, cujas obras sempre têm por títulos “contra” (adversus) as diferentes ciências que ele quer combater; foram aqui denominadas “contra os filósofos ontológicos”, “contra os retóricos aristotélicos” e “contra os filósofos ontológicos e os retóricos aristotélicos”.
Como o pano de fundo continua a ser argumentar contra a tirania da “verdade”, provavelmente o conceito retoricamente mais bem-sucedido da cultura ocidental, procuro mostrar também a ingenuidade de abordagens supostamente científicas sobre a “realidade social”, como nas ditas “ciências sociais” e, sobretudo, quanto a aspectos que chamam de “jurídicos”, as quais pretendem literalmente “descobrir” leis que governariam peculiaridades e desenvolvimentos das sociedades humanas.
Para isso, ressalto uma distinção conceitual entre perspectivas empíricas e perspectivas normativas, além de um terceiro gênero, que já estava latente em minha crítica às escatologias na primeira edição, mas só agora foi tornado explícito.
Uma teoria empírica dirige-se ao passado e procura descrevê-lo tal como parece àquele que a expressa; é uma perspectiva menos ambiciosa, mas nem por isso livre de divergências, sobretudo quanto a sua suposta característica de abster-se de juízos de valor. Uma teoria normativa tem como vetor o futuro, para o qual procura prescrever otimizações, melhorias na visão de seu autor, quer modificar, dirigir, influenciar o ambiente e a conduta das pessoas, em geral com objetivos idealistas edificantes. Uma terceira variante, que se pode chamar de escatológica, é aquela que pretende utilizar o passado para descrever o futuro, isto é, compreender algo que ainda não existe a partir da observação daquilo que acredita ter acontecido; são as teorias de inspiração “científica”, sobretudo as que pretendem inserir o direito nas ditas ciências sociais, para as quais é possível explicar a sociedade a partir da “descoberta” de “leis” (etiologias) e assim prever situações futuras (escatologias).
Nada disso tem sentido para uma filosofia retórica do direito como aquela proposta aqui e daí a retórica realista ter uma perspectiva empírica.
No sentido de melhor fundamentar as teses aqui defendidas, houve várias modificações e acréscimos em relação à primeira edição. A antropologia filosófica que vê o ser humano como carente, a qual fundamenta a retórica, foi mais detalhada, mostrando que a capacidade de viver em ambientes os mais diferentes, que caracteriza nossa espécie, não evidencia qualquer superioridade de sua “razão”, porém sim a inadaptabilidade de sua pobreza de instintos diante dos estímulos do mundo e a compensação promovida por uma linguagem que constitui seu único meio ambiente, posto que jamais percebe quaisquer eventos, mas tão somente relatos sobre eles.
Assim, nada há além de solipsismo e vaidade para considerar o chamado homo sapiens como um plus biológico ou ético, a “coroa da criação”. Os dinossauros, vírus, ácaros e bactérias parecem mais bem-sucedidos na luta pela vida. Daí a fascinante aventura humana de construir seu próprio mundo. Os trechos que analisam o sociobiologismo e a neurofisiologia não pretendem, portanto, fazer ciência, mas tão somente mostrar que são argumentos como quaisquer outros.
Não conheço, na história da filosofia ocidental, uma filosofia tão radicalmente retórica como aquela proposta aqui, em que pese aos muitos precursores que tenho cuidado de mencionar. A tripartição adotada é inspirada em Ottmar Ballweg, sem dúvida, mas ele não é responsável por quaisquer dos desdobramentos sugeridos, pois, fiel à tradição aristotélica, sempre achou que a retórica se reduziria aos meios de persuasão e, por não buscar a verdade, não teria uma atitude filosófica.
Ballweg, por sua vez, assim como eu, inspira-se em Friedrich Nietzsche, o qual nos fala de três níveis: retórica como dýnamis (δύναμις), como téchne (τέχνη) e como epistéme (ἐπιστήμη). O leitor vai notar neste livro a grande influência da teoria do conhecimento de Nietzsche, mas não de sua ética, ainda que ele tenha se preocupado mais com ética do que com conhecimento. Outra influência marcante vem da sofística clássica, antes que Aristóteles advogasse a redução da retórica à persuasão, postura bem menos adequada a uma filosofia do direito.
A contribuição de Schopenhauer, assim como a de Aristóteles, não chega à retórica material, e daí à retórica como filosofia, porque acredita na verdade. Ambos têm o grande mérito de entender a retórica como estratégia, erística ou persuasiva, respectivamente, mas não dão o passo radical da retórica material, isto é, compreender a realidade do mundo como relato vencedor.
Muitos autores brasileiros são referidos, claro. Mas, com exceção de Tercio Sampaio Ferraz Junior, não menciono retóricos brasileiros porque, além de meus alunos, ainda muito jovens, eles simplesmente não existem. Uns poucos céticos brasileiros – ligados a instituições para estudo da filosofia, pois o ceticismo sempre esteve estranhamente ausente das faculdades de direito – já mencionei em outras obras. De toda forma, não fazem filosofia retórica e não são mais referidos neste livro.
De toda forma, a solidão sempre foi companheira do filósofo.
Sem escola, nem de samba, o nome desta minha filosofia do direito não é, portanto, o mais importante. Poderia chamar de “retórica dialética” em lugar de “realista”, posto que, como na dialética de Marx, sujeito e objeto modificam-se mútua e eternamente. Desisti de “dialética” por dois motivos: primeiro, essa palavra é utilizada por tantos e em tantos sentidos, tão diferentes quanto confusos; segundo porque a retórica realista dispensa completamente esse dualismo entre sujeito e objeto e os dissolve na linguagem.
Ao elevar a retórica ao nível de uma filosofia do conhecimento e da ética, a retórica realista radicaliza de modo que me parece definitivo as inserções de historicismo, ceticismo e humanismo e afasta de vez as certezas incutidas pelas concepções dominantes de senso comum, religião e ciência, seus milenares adversários, abrindo caminho para uma ética retórica da tolerância, como pretendo expor no futuro.
João Maurício Adeodato
PREFÁCIO
Um prefácio não é uma introdução à obra que se prefacia. A introdução cabe ao autor da obra. Também não se trata de um currículo biográfico e bibliográfico do autor. Isso é tarefa editorial que compete a quem publica. Um prefácio é, como diz o étimo, um pre-facere, um fazer antes, que busca inspiração na obra e seu autor.
João Maurício Adeodato foi meu orientando, mas é, antes de tudo, alguém que pensa. Um pouco na linha reclamada por Schopenhauer (Parerga und Paralipomena, 1851), soube desenvolver essa capacidade rara de pensar, não sem esteio em experiências intelectuais pregressas, mas sem uma preocupação apenas livresca e erudita restrita a comentários do que dizem outros. Arranca, assim, da alma sua impressão da circunstância e a converte em conceito. Pensa como uma expressão de angústia intelectual: quer entender, mesmo que não encontre fundamentos para aquilo que entende.
Talvez aí o cerne temático da dúvida, quase um Leitmotiv para um autor que também é músico, capaz quiçá por isso de ter a sensibilidade para as práticas jurídicas, não como busca da justiça, mas como justiça da busca. Ou seja, da justiça como problema e não como resultado. Donde sua intransigente dúvida cética quanto a uma verdade essencial. O que não obsta uma preocupação constante de crítica. Mas crítica no sentido de parrhesia, como apontado por Foucault (em suas aulas na Universidade de Berkeley em 1986; v. Diskurs und Wahrheit, Berlin, 1996).
Parrhesia é uma antiga palavra grega que provém de pan (tudo) e rhema (o dito, o falado) e que aproximadamente significava liberdade de falar tudo, portanto, de falar o que se pensa, uma espécie de qualidade moral exigida para saber a verdade e, assim, para comunicá-la aos outros. Saber a verdade como ocorre, por exemplo, num processo judicial, não quando alguém fala a verdade e toma por verdadeiro o que fala, mas quando se aceita o “jogo” entre quem fala e diz a verdade e aqueles com quem se dialoga. Saber a verdade, portanto, como uma forma de crítica cuja função discursiva não é apresentar (ex-por) a verdade a alguém, mas abrir-se à concordância ou discordância do interlocutor ou de si próprio. E um abrir-se sem a premissa presumida da diferença gerada pela hierarquia das situações (por exemplo, argumento de autoridade) ou de alguma essência prevalecente (uma evidência axiomatizada). Daí, porém, uma certa incompatibilidade entre parrhesia e retórica, esta última, o centro temático deste livro de João Maurício Adeodato.
Uma incompatibilidade, contudo, própria de filosofias como a platônica que encontra o problema principal do pensar na diferença entre o logos que diz a verdade e o logos incapaz de falar a verdade (Fedro). O que destituiu a retórica de um status cognitivo positivo, ao reduzi-la a mera empiria, como a “arte” dos cozinheiros… (Gorgias, 461e, 487ª-e, 491e). Platão pensava na retórica como uma forma discursiva monológica, cheia de artifícios, o que veio a marcar a relação com a filosofia na forma de uma exclusão. Mas que não prevaleceu inteiramente, quando se sabe que, entre os romanos, já no século II de nossa era, Quintiliano viria a falar, em sinonímia com a parrhesia, de libera oratione (Institutio oratória, Liv. IX), não como simulação e esperteza do orador, mas como uma figura dentre as figuras retóricas, capaz de persuadir sem apelo às emoções. Donde sua percepção filosófica como uma arte de vida (o perguntar e o responder socrático) em termos de uma conexão entre pensamento e realidade enquanto um processo de problematização.
Nesse processo, a relação entre o logos verdadeiro e o logos incapaz da verdade toma outro rumo, que reabilita a retórica como uma espécie filosófica. Esse caminho, perfilhado por João Maurício Adeodato, leva a uma recusa radical da incompatibilidade entre filosofia e retórica, ao permitir uma filosofia retórica, cujo cerne está na dúvida metódica.
Metódica, sim, mas à moda de uma dúvida radical, capaz de duvidar da própria dúvida (Vilém Flusser. A dúvida, Rio de Janeiro, 1999). O que, se de um lado parece fechar o espaço da razão (é a dúvida cética no sentido kantiano), de outro não deixa de ser abertura para a persuasão como aquele “jogo” entre quem fala e diz a verdade e aqueles com quem se dialoga. Isto é, o jogo da parrhesia, em cujo âmago está um falar livre de qualquer autenticação intelectual (realidade, senso de realidade, essência, sanidade mental etc.). Uma espécie de niilismo programático, que, de certo modo, supera o sentido contraditório e paradoxal do argumento tudo é duvidoso, inclusive a dúvida. Supera porque não se coloca nem no plano sintático (V/F), nem no plano semântico (ser ou não ser), mas no pragmático, no qual o intelecto (ego cogito) não é algo que pensa (o ego como um quid sintético – o eu empírico) nem um eu pensante (o eu transcendental), mas, simplesmente, uma maneira como pensamentos ocorrem. Donde o abandono de toda metafísica, visível nesta obra de João Maurício Adeodato.
A maneira de ocorrência de pensamentos não é, pois, como uma teia de conceitos, capaz de inferência lógica (à moda aristotélica) ou capaz de constituir a realidade (à moda kantiana), nem opera como adaequatio rei et intellectus em qualquer forma de filosofia tradicional. A teia de pensamentos é, pragmaticamente, idêntica à própria dúvida: pensar é duvidar. E nisso o fundamento da parrhesia e sua dimensão retórica como exercício de desautenticação de qualquer logos verdadeiro como condição para aquele abrir-se à concordância ou discordância do interlocutor ou de si próprio.
Esse exercício não é conceitual (de conceptus: captar com o logos), mas é palavroso, isto é, puro exercício da fala como organização (persuasiva, dissuasiva) de palavras. Com isso uma distinção como a saussureana entre langue e parole toma outro sentido: o sentido de hipótese institucional de articulação (língua, língua pátria, o direito como língua) e exercício articulado de um palavreado (fala, fala corrente, tomar decisões, legislar, sentenciar, argumentar processualmente).
Altera-se, com isso, como se percebe, a forma de apresentar o próprio direito, nas suas múltiplas falas. A começar da hipótese de uma unidade sistemática (norma fundamental, valor fundante, direitos fundamentais etc.). A retórica filosófica endereçada ao direito nem o unifica conceitualmente a partir de um sujeito (pessoa humana), nem com base em um objeto, seja um valor (dignidade) seja um dado empírico (a constituição positiva), nem como uma sequência de predicados (normas jurídicas como ordenamento). Não ignora essas articulações em triplicidade, mas não tenta superá-las em unidade (metafísica). O direito (quid jus) carece de significado, pois só pode ser expresso no “jogo” – palavroso – enquanto uma interrogação (de jure?) de muitas formulações: peticionar, contestar, arrazoar, sentenciar, legislar, constitucionalizar, classificar, distinguir, reconhecer, ignorar etc.
Desse ângulo o direito não passa de uma organização inarticulada, da qual se arranca um articulado: a lei, a sentença, o direito subjetivo, como um esforço – retórico – de articular o inarticulado (um pouco como o deus sem nome, indizível, Jeová, do qual Moisés arranca as tábuas da lei). Daí a importância da conversação (Grice) para o direito que, ao mesmo tempo em que o articula, de certo modo o “profana”. Em outras palavras, a eventual variabilidade dogmática na construção racional da legislação, em sede hermenêutica, não repousa apenas nas dificuldades semânticas de se obter uma denotação e uma conotação mais precisas, mas no uso pragmático das codificações e suas decodificações no jogo da comunicação humana, conforme padrões de justiça com sua função interpretativa dos sistemas normativos: ora como fator de congruência, ora como fator de incongruência, que ora ilumina o sentido do direito, ora o atira nas sombras.
Afinal, esta obra de João Maurício Adeodato instiga não porque aponta para reconstruções retóricas do direito (tópica jurídica, teoria da argumentação), mas porque desconstrói até mesmo as próprias construções retóricas, ao fazer da retórica um objeto de si mesma, numa abdicação metafísica que faz do direito um objeto de si mesmo. Não à moda kelseniana ou de Cossio, mas em termos de direitos que, ao significar a si mesmos, produzem o direito sem significado.
Tercio Sampaio Ferraz Junior