Prefácio: Com o presente livro – O fundamento fático de validade das CIDES e o Controle concentrado de sua constitucionalidade – Aldo de Paula Junior oferece texto que acresce, sobremaneira, a doutrina do Direito Constitucional Tributário brasileiro, ao mencionar distorções na prática do exercício das prerrogativas atribuídas à União pela Lei Suprema.
De fato, a Constituição da República concedeu ao ente federal competência para instituir contribuições de intervenção no domínio econômico, tributo que vem proporcionando àquela pessoa política de direito constitucional interno substanciosas arrecadações. Esse fator aumenta ainda mais a força jurídica do poder central, com as inevitáveis projeções no âmbito político e econômico, numa nítida e manifesta supremacia em relação às unidades federadas e aos municípios brasileiros, o que impede a realização dos ideais de equilíbrio e harmonia, valores imprescindíveis ao sistema federativo, prescrito pelos constituintes de 1988. Tal consideração, certamente, foi uma das causas da crítica do Prof. Paulo Bonavides, quando, em linguagem candente, alude à nossa forma de Estado, como a quimera dos constitucionalistas, pois somos hoje uma federação condenada à morte (palavras do discurso proferido na PUC/RS, por ocasião do recebimento da medalha do “Mérito Universitário”).
Na verdade, o Autor escolheu o tema para salientar outros aspectos, jurídicos por excelência, e que dizem respeito ao modo como a União vem utilizando a outorga que lhe foi feita pela Carta Constitucional, em algumas das contribuições de intervenção no domínio econômico: sem aplicação dos valores arrecadados nos propósitos para os quais foi instituída ou empregados para a formação de caixa (“superávit” primário), ignorando a finalidade do tributo como instrumento de custeio, a que se refere o art. 149, da Constituição da República.
Com base em noções seguras de Teoria Geral do Direito, separando o plano do ser daquele do dever-ser, Aldo de Paula Junior distingue, com propriedade, fato e evento, passando a analisar os fatos e as contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDES), bem como os acontecimentos factuais em face do controle concentrado de constitucionalidade. Ainda nesse último subtítulo, enfrenta a tradicional distinção entre questão de fato e questão de direito, a modalidade das provas diante dos conceitos de validade e de verdade, o conteúdo da decisão de inconstitucionalidade baseada em pressuposto fático, além de exposição sobre as técnicas de decisão de inconstitucionalidade e seus efeitos no tempo, levando em conta o direito americano, alemão, espanhol, italiano e português, ao lado da experiência brasileira, tudo, para abrir o quinto capítulo, reservado à aplicação de tais conceitos ao estudo dos fatos e do controle concentrado de constitucionalidade das contribuições de intervenção no domínio econômico.
Encerra o trabalho com uma série de proposições afirmativas que marcam a evolução de suas reflexões a propósito da matéria.
Pois bem. Acompanho a vida acadêmica de Aldo desde o início e sempre admirei a seriedade com que participa da discussão e da interpretação das questões jurídicas por ele examinadas, assim nos textos que já fez publicar, quanto nas aulas e palestras tão elogiadas pelos alunos. Sua experiência em Brasília, na condição de assessor de ministro, no Supremo Tribunal Federal, trouxe-lhe excelentes resultados. Tal nota pode explicar a naturalidade com que lida com o direito positivo advindo do Poder Judiciário, principalmente com a jurisprudência de nossa mais alta Corte de Justiça, presente em quase toda a extensão deste livro. O Autor distingue muito bem a interpretação que nos conduz às camadas mais profundas da Teoria Geral e da Filosofia, daqueloutra que nos leva a considerações meramente técnicas. Parte do direito posto, mas não o toma como fim temático, porém como índice temático, isto é, vai ao direito positivo e empreende uma exegese sistêmica, procurando os fundamentos do plexo normativo para chegar às categorias básicas do pensamento jurídico, que lhe permitem formar suas convicções e manifestá-las com clareza e determinação. O domínio do idioma, claro está, é elemento decisivo para alcançar seus objetivos, movimentando-se com destreza tanto no plano sintático, como no semântico e pragmático. Isso torna agradável a leitura do texto, facilitando o rigor e a precisão linguística, qualidades que Aldo persegue desde o início até o fim do trabalho, de maneira sóbria, comedida, discreta, mas retoricamente vigorosa, exibindo sempre sua indiscutível vocação especulativa.
Eis alguns pontos que me chamaram a atenção na leitura da obra. Nela, consegue o Autor aplica a teoria à prática; a ciência à experiência, produzindo argumentos consistentes para demonstrar as proposições que selecionou como relevantes nessa matéria.
O escrito corresponde à tese com que Aldo de Paula Junior obteve o grau de doutor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sustentando suas conclusões com eloquência e entusiasmo. Está de parabéns, portanto, a Instituição bem como a Editora Noeses que, em boa hora, a fez publicar.
São Paulo, 27 de outubro de 2.014
Paulo de Barros Carvalho
Professor Emérito da PUC/SP e da USP
INTRODUÇÃO
A escolha do tema desta obra foi uma reação ao tratamento dispensado pela União a algumas contribuições de intervenção sobre o domínio econômico (CIDES).
De 2001 a 2012 foi exigida a contribuição de intervenção sobre o domínio econômico destinada ao Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), instituída pela Lei no 9.998/2000 e calculada em 1% (um por cento) sobre a receita operacional bruta decorrente da prestação dos serviços de telecomunicações (art. 6, IV, Lei no 9.998/2000), sem que tenha havido qualquer execução de política pública por parte da União ou aplicação dos mais de doze bilhões (R$ 12.557 bilhões ) com ela arrecadados para o propósito para o qual instituída.
Além desta contribuição, a CIDE-Combustíveis (Lei no 10.336/2001) também vem sendo utilizada como instrumento de formação de caixa (superávit primário) e não como instrumento de custeio da atuação da União na respectiva área (art. 149, CF/1988).
O problema é de certa forma recente, mas foi parcialmente enfrentado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na última sessão do ano de 2003, ao julgar a ADI no 2.925/DF (Rel. Min. Ellen Gracie), que tinha por objeto a lei orçamentária daquele exercício que alocava como “reserva de contingência” 40% da arrecadação da CIDE-Combustíveis prevista para aquele ano, ou seja, desde a lei orçamentária a União demonstrava que arrecadaria mais que o necessário para a respectiva intervenção sobre o domínio econômico e que não utilizaria tais recursos na finalidade que justificou sua instituição.
Após acalorados debates, o Plenário afastou jurisprudência consolidada que não conhecia de ação direta contra lei orçamentária e julgou a ação parcialmente procedente “para dar interpretação conforme a Constituição, no sentido de que a abertura de crédito suplementar deve ser destinada às três finalidades enumeradas no artigo 177, § 4º, inciso II, alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’, da Carta Federal.”
Apesar de o Tribunal reconhecer expressamente que a competência tributária é condicionada ao custeio de determinadas atuações da União (art. 177, § 4º, inciso II, alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’, da Constituição Federal de 1988) reconheceu também que o orçamento público não é impositivo e que o Judiciário não poderia obrigar o Executivo a gastar os recursos nesta ou naquela rubrica orçamentária.
Diante deste cenário, surge a pergunta que move as digressões deste livro: como controlar o exercício desta competência?
Para respondê-la, analisamos a estrutura constitucional da norma de competência das CIDES e constatamos que ela se diferencia daquela utilizada para os impostos e se aproxima dos empréstimos compulsórios e das taxas, porque condicionados ao custeio de uma determinada atuação do Estado dependente de pressupostos fáticos (na acepção ponteana).
Os pressupostos fáticos aparecem, portanto, como elementos da competência tributária e, como tais, passíveis de controle pelo Judiciário.
A partir desta premissa, passamos a analisar a intervenção como um pressuposto fático dependente da observância dos contornos e requisitos do capítulo constitucional destinado à ordem econômica (art. 170 e ss. da CF/1988), segundo o qual a intervenção do Estado sobre o mercado é excepcional e subordinada à livre iniciativa e à livre concorrência.
Portanto, o controle de validade da CIDE não se esgota na norma de instituição do tributo, mas alcança a validade da própria intervenção da qual ela é totalmente dependente (como sua fonte de custeio). Da mesma forma que no controle de constitucionalidade das taxas, não basta a leitura da lei instituidora, é necessária a verificação se o serviço público é prestado ou posto à disposição dos usuários (pressuposto fático) e se ele é válido (se é da competência do sujeito ativo, por exemplo).
No capítulo dedicado ao perfil constitucional das CIDES perscrutamos os critérios de validade da intervenção, notadamente o motivo (composto por: a) necessidade financeira; b) necessidade social, econômica ou política; c) objetivo existente e determinado; e d) inexistência de outro instrumento suficiente em ação para a obtenção do mesmo fim), a realização in concreto da intervenção e a aplicação dos recursos arrecadados.
A estes critérios denominamos, respectivamente, de fato motivo (FM), fato execução (FE) e fato aplicação (FA).
Desenhados estes contornos, analisamos no capítulo 3 as técnicas, conteúdo e alcance no tempo da decisão de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade) proferidas no âmbito do controle concentrado e como este processo objetivo lida com os fatos e prognoses legislativos.
É curioso que apesar da doutrina clássica do controle concentrado de constitucionalidade restringir o papel do Supremo Tribunal Federal à análise comparativa entre diplomas legislativos, a prática da Corte vem demonstrando sua disposição para ampliar o objeto de cognição por meio da análise de fatos em audiências públicas e da participação de amici curiae com apresentação de laudos técnicos, pareceres, estudos, etc.
Esta abertura alinha-se com a nossa abordagem e com o nosso posicionamento, porque defendemos a análise dos pressupostos fáticos no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade das CIDES.
Ainda neste capítulo, analisamos as diferentes técnicas de decisão em controle concentrado de constitucionalidade e vimos que ao lado da tradicional pronúncia de nulidade, o Supremo Tribunal Federal tem construído diferentes soluções pragmáticas como a constitucionalidade se-enquanto e a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade (aplicada em casos de modulação de efeitos).
Estas técnicas são respostas do Tribunal a problemas concretos que não são exclusivos de nosso sistema constitucional como pudemos constatar na análise comparativa das soluções apresentadas pelo direito americano, alemão, espanhol, italiano e português aos paradoxos decorrentes da fria aplicação da dicotomia nulidade-anulabilidade aos efeitos no tempo da decisão de inconstitucionalidade.
Por fim, apoiados nos conceitos desenvolvidos nos capítulos anteriores e na metodologia dos círculos hermenêuticos , recortamos um quadro de possibilidades fáticas para investigarmos o papel dos pressupostos fáticos de validade no controle concentrado de constitucionalidade das CIDES.
Diante da combinação lógica dos critérios fáticos de validade, chegamos às seguintes possibilidades:
1. Todos os elementos fáticos estão presentes;
2. Não há fato motivo (necessidade), mas há intervenção e há destinação;
3. Há fato motivo (necessidade), não há intervenção e há destinação (situação impossível);
4. Não há fato motivo (necessidade), não há intervenção e há destinação (situação impossível);
5. Há fato motivo (necessidade) e há intervenção, mas não há destinação;
6. Não há fato motivo (necessidade social, econômica ou política), há intervenção, mas não há destinação;
7. Há fato motivo (necessidade), não há intervenção e nem destinação;
8. Não há fato motivo (necessidade), não há intervenção e nem destinação.
Como os fatos são dinâmicos, estas combinações não são definitivas e podem variar ao longo do tempo, razão pela qual a análise da validade não se esgota no momento da instituição da CIDE (validade estática), mas acompanha todo o seu ciclo de vida (validade dinâmica), ou seja, este tributo pode nascer constitucional e tornar-se inconstitucional em momento subsequente ou ainda pode ser constitucional, mas estar prestes a perder sua validade.
A complexidade do quadro demonstra que a aplicação irrestrita da tradicional técnica de decisão de inconstitucionalidade com pronúncia da nulidade da norma desde sua origem não tem amparo na realidade fática e não resolve todos os problemas decorrentes da articulação combinada das variáveis em jogo.
Neste cenário, conjugamos as possibilidades fáticas e concluímos pela adoção de técnicas de decisão de inconstitucionalidade adequadas para cada quadro fático-normativo:
a) Nulidade desde o início por ausência de pressuposto fático que comprometa a instituição do tributo: para aquelas situações em que ausente o fato motivo desde a origem ou naquelas em que o fato execução e o fato aplicação não se materializam dentro de determinado prazo;
b) Inconstitucionalidade superveniente a partir de momento determinado (identificado e provado) com nulidade a partir deste momento: para o caso em que a CIDE inicialmente constitucional, perde seu fato motivo pelo desaparecimento da necessidade financeira, da necessidade fática, ou pelo atingimento do objetivo; ou ainda para os casos em que a ausência do fato execução e do fato aplicação comprometam o fato motivo a partir de ponto determinado no tempo;
c) Inconstitucionalidade superveniente deslizante: muito parecida com a descrita no quadro anterior, mas agravada pela impossibilidade de se determinar o momento em que ocorreu a perda do fato motivo (necessidade financeira, econômica ou política) pela sua mudança gradual e contínua no tempo;
d) Constitucionalidade enquanto mantidas as condições fáticas: na hipótese de o Supremo Tribunal Federal surpreender a CIDE em um momento próximo à sua inconstitucionalização pela perda do fato motivo necessidade social, econômica ou política;
e) Inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade (efeitos ex nunc) que poderia (ou não) ser acompanhada do apelo ao legislador para que dê aplicação aos recursos arrecadados com a CIDE.
Constatada a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade da CIDE pela ausência e/ou perda de seus fundamentos fáticos de validade por meio do controle concentrado, e as técnicas de decisão aplicáveis, enfrentamos a questão daí decorrente: o que fazer com os recursos arrecadados em desconformidade com a Constituição?
Apesar das posições em contrário, demonstramos que os recursos devem ser restituídos aos cidadãos contribuintes, ainda que a inconstitucionalidade atinja o excesso da arrecadação ou que a CIDE não seja a única fonte de recursos para o custeio da intervenção. Em ambos os casos, entendemos que o Supremo Tribunal Federal pode identificar a proporção do excesso e aplicá-la como critério de restituição da parte recolhida indevidamente pelo contribuinte.
Durante todo o processo investigativo procuramos apoiar nossas reflexões e conclusões em fatos relacionados a CIDES existentes e neste aspecto a contribuição ao FUST (Lei no 9.998/2000) forneceu rico subsídio de análise, principalmente pelo material produzido pelo Tribunal de Contas da União no âmbito do Processo TC-010-889-2005-5 que gerou o Acórdão no 2.148/2005 (Rel. Min. UBIRATAN AGUIAR, julgado em 07.12.2005), onde se destaca o relatório de auditoria encomendado pelo Tribunal no qual são demonstradas as ausências de políticas públicas, de previsão orçamentária de gastos, de intervenção (atuação) e de destinação dos recursos.
Nas hipóteses construídas a partir da articulação das possibilidades lógicas em que não encontramos exemplos fáticos, deduzimos as conclusões a partir da interpretação e avaliação de cenários ideais ou teóricos.
Nosso objetivo foi construir critérios seguros para o controle da exigência de um tributo que vem assumindo papel de relevo na carga tributária nacional e que claramente tem seu perfil constitucional deturpado pela prática da União. Ainda que estes critérios não sejam os únicos, ficaremos satisfeitos se estas reflexões puderem contribuir para a construção de um sistema tributário mais racional em que a força normativa da Constituição Federal seja respeitada.