Sumário: 1. Considerações introdutórias. 2. Intercorrências no processo de positivação das normas jurídicas tributárias. 3. “Existência” do crédito tributário. 4. “Exigibilidade” do crédito tributário. 5. “Exequibilidade” do crédito tributário. 6. Efeitos da suspensão da exigibilidade do crédito tributário. 6.1. Concretização de causa suspensiva sem que tenha iniciado o período de exigibilidade do crédito tributário. 6.2. O cumprimento de deveres instrumentais na hipótese de causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário. 6.3. O pressuposto jurídico da mora e sua inocorrência nos casos em que há cumprimento de norma individual e concreta suspensiva da exigibilidade do crédito tributário. 6.4. Suspensão da exigibilidade do crédito tributário e o livre exercício profissional. 7. Conclusões. Referências bibliográficas.
1. Considerações introdutórias
Situado no Livro Segundo do Código Tributário Nacional, o Capítulo III do Título III intitula-se “Suspensão do crédito tributário”. Sabemos, porém, que o legislador emprega linguagem técnica, aproveitando algumas palavras e expressões do domínio científico, mas edificando seu discurso com suporte na linguagem natural. Isso leva à inevitável presença de equivocidades redacionais, cabendo ao intérprete suplantá-las. Nesse sentido, e seguindo a lição de renomada doutrina brasileira[1], concluímos que não é o “crédito tributário” que se suspende, mas sua “exigibilidade”.
O próprio art. 151 do Código Tributário Nacional, ao disciplinar o assunto, relaciona as hipóteses que “suspendem a exigibilidade do crédito tributário”, dispondo sobre os efeitos das situações fáticas que indica: moratória, depósito do montante integral do crédito tributário, concessão de medida liminar em mandado de segurança, concessão de medida liminar ou de tutela antecipada em outras espécies de ação judicial e parcelamento. Tais fatores não atingem o crédito em si, em quaisquer de seus elementos existenciais, mas somente sua exigibilidade.
Em vista disso, necessário se faz delimitar o que seja a “exigibilidade” do crédito tributário, bem como as consequências jurídicas de sua suspensão. É o que faremos a seguir.
2. Intercorrências no processo de positivação das normas jurídicas tributárias
Denominamos positivação do direito o processo mediante o qual o aplicador, partindo de normas jurídicas de hierarquia superior, produz novas regras, objetivando maior individualização e concretude. Os preceitos de mais elevada hierarquia e, portanto, ponto de partida para o clico de positivação, encontram-se na Constituição da República: são as competências tributárias. Com base nesse fundamento de validade, o legislador produz normas gerais e abstratas instituidoras dos tributos: são as regras-matrizes de incidência tributária, descrevendo conotativamente, em sua hipótese, fato de possível ocorrência, e prescrevendo, no consequente, a instalação de relação jurídica, cujos traços relaciona. Avançando cada vez mais em direção à disciplina dos comportamentos intersubjetivos, o aplicador do direito veicula norma individual e concreta, relatando o evento ocorrido e, por conseguinte, constituindo o fato jurídico tributário e a correspondente obrigação.
Na hierarquia do direito posto, as normas gerais e abstratas costumam concentrar-se nos escalões mais altos, surgindo as gerais e concretas, individuais e abstratas, e individuais e concretas[2] à medida que o direito vai se positivando, com vistas à regulação das condutas interpessoais. Caracteriza-se o processo de positivação exatamente por esse avanço em direção aos comportamentos humanos, partindo de normas gerais e abstratas, as quais, dada sua generalidade e abstração, não têm condições efetivas de atuar num caso materialmente definido[3]. Por isso, exige-se o processo de positivação, expedindo-se norma individual e concreta a fim de que a disciplina prevista para a generalidade dos casos possa chegar ao sucesso efetivamente ocorrido, modalizando deonticamente as condutas.
É pelo ato de aplicação do direito que se tem o processo de positivação a que nos referimos, pois, segundo Paulo de Barros Carvalho, “a aplicação do direito é justamente seu aspecto dinâmico, onde as normas sucedem, gradativamente, tendo sempre no homem, como expressão da comunidade social, seu elemento intercalar, sua fonte de energia, o responsável pela movimentação das estruturas”[4].
Convém esclarecer que a aplicação do direito não dista da própria produção normativa. “A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito”, conforme assevera Hans Kelsen[5]. Trata-se de ato mediante o qual se extrai de regras superiores o fundamento de validade para a edição de outras regras, cada vez mais individualizadas. E é somente por meio dessa ação humana que se opera o fenômeno da incidência normativa em geral, assim como da incidência tributária, em particular. Sem que um sujeito realize a subsunção e promova a implicação, expedindo novos comandos normativos, não há que falar em incidência jurídica.
Essa movimentação das estruturas do direito em direção à maior proximidade das condutas intersubjetivas exige a certificação da ocorrência do fato conotativamente previsto na hipótese da norma que se pretende aplicar, mediante o relato em linguagem competente, ou seja, a linguagem prevista pelo próprio ordenamento.
No âmbito tributário, a aplicação da norma geral e abstrata (representada pela regra-matriz de incidência) pode ser realizada pelo contribuinte ou por autoridade administrativa. Na primeira hipótese, tem-se o impropriamente denominado lançamento por homologação, em que o particular emite a norma individual e concreta, constituindo, ele próprio, sua obrigação tributária. Por outro lado, quando a obrigação tributária é constituída por ato administrativo, está-se diante do lançamento tributário, referido pelo art. 142 do Código Tributário Nacional.
Mas o ciclo de positivação não se encerra com a lavratura do ato de lançamento tributário ou com a emissão da norma individual e concreta pelo contribuinte, constituindo-se o crédito tributário. É com tais expedientes que surge o vínculo jurídico obrigacional e, no seu bojo, o direito de o Estado perceber o valor da prestação tributária. Aparece, então, o crédito tributário. Depois de constituído, o crédito tributário tem sua vida impulsionada por uma série de atos produtores de normas individuais e concretas. Operam-se, assim, a inscrição do crédito em dívida ativa e o ajuizamento da execução fiscal, dando sequência ao fluxo da causalidade jurídica, na direção de efetivar o direito subjetivo da Fazenda Pública. Daí a conclusão de Daniel Monteiro Peixoto[6], no sentido de que o ato de lançamento e imposição de multa, o ato de inscrição em dívida ativa e o ato de ajuizamento da execução fiscal são espécies do gênero “atos de cobrança do crédito tributário”.
Existem situações, entretanto, que impedem o seguimento do processo de positivação das normas jurídicas tributárias. São as causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário, arroladas no art. 151 do Código Tributário Nacional.
A (i) moratória, o (ii) depósito do montante integral, (iii) as reclamações e recursos administrativos, (iv) a medida liminar em mandado de segurança, (v) a medida liminar ou a tutela antecipada concedida em outras espécies de ação judicial e (vi) o parcelamento suspendem a exigibilidade do crédito tributário. Diante de tal prescrição, surgem intensos debates a respeito do termo exigibilidade, atributo do crédito tributário cuja suspensão é disciplinada pelo dispositivo legal acima referido. Fixar o sentido desse vocábulo é determinante para a especificação dos efeitos jurídicos desencadeados pelas normas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário.
3. “Existência” do crédito tributário
Já tivemos a oportunidade de afirmar[7] que sem norma um fato qualquer não adquire qualificação de fato jurídico. É o sistema normativo que decide quais fatos são jurídicos e quais não são apreendidos pela juridicidade, ou, como refere Lourival Vilanova[8], os fatos que trazem consequências jurídicas e os fatos que são juridicamente irrelevantes: “o constituírem-se ou desconstituírem-se fatos jurídicos depende de regras de formação do sistema”.
No que diz respeito ao crédito tributário, o CTN estabelece, em seu art. 142, que “Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível” (destacamos). Essa atividade, nos termos do parágrafo único, é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.
Convém registrar que, a despeito dessa estipulação legal, não se tem por resolvida a questão atinente ao conceito de lançamento tributário. O art. 142 do Código Tributário Nacional apresenta diversas imprecisões, gerando dúvidas e controvérsias a respeito do assunto.
Referido dispositivo faz menção a um procedimento administrativo, enfatizando o caráter dinâmico, procedimental da atividade de aplicação das normas jurídicas tributárias. Todavia, essa alusão ao prisma da dinamicidade do direito tributário leva à ambiguidade na definição de lançamento: trata-se do procedimento ou do ato jurídico-administrativo conclusivo daquele procedimento? Colabora para essa indeterminação, também, o indicativo de suas fases de desenvolvimento, consistentes em “verificar a ocorrência do fato gerador, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido e identificar o sujeito passivo”, pois se trata de etapas procedimentais, necessárias à operação lógica de subsunção, que não se confundem com o ato, tomado como resultado do procedimento.
Ademais, peca o art. 142 ao relacionar, como um dos objetos do lançamento, a propositura da aplicação de penalidade cabível. Com tal estipulação, coloca no mesmo plano o ato de aplicação da regra-matriz de incidência tributária e das normas sancionatórias pela ausência de pagamento do tributo e pelo descumprimento de deveres instrumentais. Explica Estevão Horvath[9] que, desse modo, têm-se englobados, sob um mesmo nome, dois atos distintos e inconfundíveis: o ato de lançamento propriamente dito e o ato de aplicação de sanção, normalmente denominado auto de infração, os quais, embora geralmente plasmados no mesmo documento, são realidades jurídicas diversas.
Em outros pontos, contudo, aquele preceito do Código Tributário Nacional dispõe de forma harmônica com o restante do ordenamento: (i) prescreve ser o lançamento de competência privativa da autoridade administrativa, evidenciando sua natureza de ato administrativo; e (ii) alude ao caráter constitutivo do crédito tributário. Para sintetizar, utilizamo-nos da definição empregada por Paulo de Barros Carvalho[10], que, a nosso ver, reflete com clareza e completude as características do lançamento: trata-se de “ato jurídico administrativo, da categoria dos simples, constitutivos e vinculados, mediante o qual se insere na ordem jurídica brasileira uma norma individual e concreta, que tem como antecedente o fato jurídico tributário e, como consequente, a formalização do vínculo obrigacional, pela individualização dos sujeitos ativo e passivo, a determinação do objeto da prestação, formado pela base de cálculo e correspondente alíquota, bem como pelo estabelecimento dos termos espaço-temporais em que o crédito há de ser exigido”. Tal enunciado definitório permite visualizar no lançamento o caráter de ato administrativo, como norma individual e concreta, além dos critérios determinantes de seu conteúdo significativo.
Tomado o direito positivo como o conjunto de normas jurídicas válidas em determinado país, todos os seus componentes hão de ser, necessariamente, normas jurídicas, ainda que em sentido amplo. Conquanto alguns enunciados não apresentem forma hipotético-condicional, caracterizando normas em sentido estrito, a circunstância de integrarem o sistema do direito confere-lhes função linguística prescritiva, permitindo identificá-los como normas em sentido amplo: enunciados normativos que, conjugados a outros enunciados de semelhante natureza, prestam-se à construção normativa stricto sensu. Disso decorre que os fatos, institutos e atos jurídicos nada mais são que denominações atribuídas a regras de direito.
O ato administrativo não dista de tais considerações, tendo Lúcia Valle Figueiredo[11] definido-o como “a norma concreta, emanada pelo Estado, ou por quem no exercício da função administrativa, que tem por finalidade criar, modificar, extinguir ou declarar relações jurídicas entre este (o Estado) e o administrado, suscetível de ser contrastada pelo Poder Judiciário”.
Essas referências doutrinárias não deixam dúvidas quanto ao caráter constitutivo do lançamento tributário.
É preciso ter em mente, também, que a concepção da teoria comunicacional do direito adota a premissa de que o direito positivo se apresenta na forma de um sistema de comunicação. Isso significa que o crédito tributário só se considera “definitivamente constituído” pelo lançamento quando da sua introdução no sistema comunicacional do direito, mediante ato de notificação do sujeito passivo. É nesse átimo que passa a ter existência o crédito tributário.
O mesmo ocorre com o “lançamento por homologação”. Nesse caso, o sujeito passivo das imposições tributárias cumpre os deveres instrumentais que lhe são cometidos, formulando linguagem que relata o acontecimento de eventos, constituindo, assim, o fato jurídico tributário e o respectivo vínculo obrigacional. Mas, como adverte Paulo de Barros Carvalho[12], para que essa expressão normativa ingresse no sistema do direito positivo, “impõe-se a necessidade premente de que o documento do qual falamos seja oferecido à ciência da entidade tributante, segundo a forma igualmente prevista no sistema do direito positivo”. É nesse instante, com cientificação do órgão público juridicamente credenciado, que o crédito tributário constituído pelo particular passa a existir no ordenamento, desencadeando os efeitos que lhe são próprios.
4. “Exigibilidade” do crédito tributário
O lançamento tributário, como vimos, configura um ato administrativo. E, como tal, reveste-se de características peculiares, que objetivam, simultaneamente, conferir garantia aos administrados e prerrogativas à Administração. Relativamente à garantia dos administrados, são identificados os seguintes atributos:
(i) ausência de autonomia da vontade: todo comportamento do Poder Público deve visar à finalidade prevista em lei, sem interferência de eventuais desejos do agente competente para praticar o ato administrativo (decorre do princípio da estrita legalidade);
(ii) busca do interesse público: o fim legal a ser atingido por meio do ato administrativo é o interesse de toda a coletividade e não do órgão estatal, isoladamente considerado;
(iii) tipicidade: o interesse público objetivado pelo ato administrativo é aquele previsto em lei, sendo vedada à autoridade administrativa qualquer prática que não esteja legalmente autorizada ou que extrapole a prescrição legal; e
(iv) formalismo: o ato administrativo, além de ser praticado com estrita observância ao prescrito em lei, deve atender a requisitos que possibilitem ao administrado o conhecimento de seu conteúdo e motivos determinantes de sua prática.
Por outro lado, implementando as prerrogativas da Administração Pública, os atos administrativos têm por qualificativos:
(i) imperatividade: possibilidade de constituir, unilateralmente, obrigações a terceiros[13];
(ii) presunção de legitimidade: presunção juris tantum de validade, da qual decorre que o ato seja considerado regularmente praticado, até que outra linguagem jurídico-prescritiva determine o contrário, invalidando-o; e
(iii) exigibilidade: poder de cobrar a prestação introduzida no ordenamento pelo ato administrativo.
Aplicando a noção de exigibilidade à figura do crédito tributário, Maria Leonor Leite Vieira[14] esclarece que esse atributo significa que “se não cumprida a prestação, fica a autoridade administrativa credenciada a praticar outro ato, inscrevendo a dívida como ativa, e requerendo a intervenção do Poder Judiciário para que aquele crédito seja liquidado, isto é, para que o dever jurídico do sujeito passivo seja exigido, sob pena de comprometimento de bens patrimoniais, o que é cuidado pela matéria instrumental, ou processual”. Como se vê, a exigibilidade não surge lógica e cronologicamente no mesmo instante em que o ato administrativo passa a existir no ordenamento: para que o sujeito ativo possa tomar as providências necessárias à cobrança do crédito tributário é imprescindível que se tenha operado o vencimento da prestação tributária. Somente quando concretizado esse fator estará o Fisco habilitado a cobrar o crédito tributário, mediante inscrição do débito na Dívida Ativa e o consequente ajuizamento da execução fiscal.
5. “Exequibilidade” do crédito tributário
Não se pode confundir exigibilidade com autoexecutoriedade. Esta, diferentemente da exigibilidade, implicaria a possibilidade de a Administração, com seus próprios recursos, impor o cumprimento do comando veiculado pelo ato administrativo. Trata-se de característica que não é verificada no ato de lançamento tributário, sendo imprescindível a intervenção do Poder Judiciário para proceder à execução da pretensão impositiva.
A exequibilidade surge, portanto, em momento distinto e posterior à exigibilidade do crédito tributário.
Aperfeiçoado o ato de lançamento, devidamente notificado ao particular, ou, sendo o caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, editada a norma individual e concreta pelo contribuinte e comunicada ao órgão público, tem-se a constituição do crédito tributário (existência). Com o vencimento do prazo para pagamento do tributo instaura-se sua exigibilidade. Todavia, o qualificativo da exequibilidade só estará presente quando formado o título executivo, passando a ser suscetível de execução judicial, nos termos da Lei nº 6.830/80.
A execução forçada, segundo José Frederico Marques[15], consiste em “um conjunto de atos processualmente aglutinados, que se destinam a fazer cumprir, coativamente, prestação a que a lei concede pronta e imediata exigibilidade”. O processo de execução tem por finalidade promover a satisfação do direito subjetivo do credor. E, dentre os meios empregados para atingir tal desiderato, o Código Processual Civil autoriza a expropriação de bens do devedor. Esclarece o mencionado processualista que, “quando proposta ação executiva, surge a responsabilidade processual do devedor: ou ele cumpre a prestação contida no título executivo, ou seus bens ficam sujeitos aos atos expropriatórios ou coativos da execução forçada”[16].
Na esfera fiscal, o título executivo é representado pela Certidão de Dívida Ativa, a qual, segundo o art. 201 do CTN, deve ser elaborada “depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão final proferida em processo regular”. Isso significa que, somente depois de tornar-se exigível o crédito tributário, a Administração Pública estará habilitada a exercer um outro ato, conferindo ao crédito o caráter da exequibilidade.
A inscrição na dívida ativa configura ato de controle administrativo de legalidade, realizado para apurar a liquidez e a certeza do crédito tributário. Mediante essa providência, a Fazenda Pública constitui, unilateralmente, o título executivo que servirá de base para a cobrança judicial dos valores não pagos à Fazenda Pública. Tem início, aí, a exequibilidade do crédito tributário, quer dizer, a possibilidade de o crédito tributário vir a ser exigido mediante processo de execução fiscal.
À evidência, a exequibilidade tem por pressuposto a exigibilidade, de modo que a suspensão desta (exigibilidade) implica a impossibilidade de dar prosseguimento a quaisquer medidas voltadas à exequibilidade do crédito tributário.
6. Efeitos da suspensão da exigibilidade do crédito tributário
Quando falamos em incidência jurídica estamos pressupondo a linguagem do direito positivo projetando-se sobre o campo material das condutas intersubjetivas para organizá-las deonticamente. Como anotamos, a norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindica, incisivamente, a edição de norma individual e concreta, a ser emitida por órgão credenciado pelo sistema. Todavia, nesse percurso podem ocorrer ingerências mediante a edição de outras normas individuais e concretas, que impliquem suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Integrando o ordenamento pela satisfação dos requisitos que se fizerem necessários, a norma jurídica de suspensão de exigibilidade do crédito tributário é válida e como tal se mantém até o momento em que deixa de pertencer ao sistema, sendo dali retirada por outra norma que assim o determine.
Descabida qualquer alegação no sentido de haver diferenças entre os efeitos dessa espécie normativa e das demais normas individuais e concretas, por tratar-se aquela de norma provisória. Funcionando o ato como introdutor de norma individual e concreta no ordenamento positivo, desde que apresente os requisitos jurídicos para sua formação, referida norma ingressa no sistema, passando a integrá-lo. Consideração diversa, contudo, refere-se à possibilidade de vir ela a ser modificada por outra norma jurídica, expedida posteriormente. Como leciona Paulo de Barros Carvalho[17], “a susceptibilidade a impugnações é predicado de todos os atos administrativos, judiciais e legislativos, com exceção somente daqueles que se tornaram imutáveis por força de prescrições do próprio sistema do direito positivo, como é o caso da decisão administrativa irreformável (que adquire definitividade no âmbito meramente administrativo) e da decisão judicial transitada em julgado, não mais podendo ser atacada por ação rescisória”. Não há, portanto, o menor cabimento em estabelecer a dualidade “provisória/definitiva” como critério de referência a normas expedidas no bojo do processo de positivação do direito. Caso contrário, seria forçosa a conclusão de que tudo, ou quase tudo, no direito é provisório. Até mesmo as sentenças e os acórdãos dos Tribunais seriam provisórios, já que podem suscitar recursos e ser reformados.
Em vista disso, o fato de serem provisórias as medidas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário não interfere em sua validade. Enquanto não for retirada do sistema por outra norma jurídica que assim o determine, a regra suspensiva produzirá efeitos, disciplinando as condutas intersubjetivas por meio de dever-ser modalizado (proibido, permitido ou obrigatório).
6.1. Concretização de causa suspensiva sem que tenha iniciado o período de exigibilidade do crédito tributário
Ao disciplinar as causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário, o art. 151 do Código Tributário Nacional relaciona hipóteses cuja concretização pode dar-se antes de ter-se iniciado o período de exigibilidade do crédito. As reclamações e recursos administrativos, por exemplo, são interpostos tempestivamente quando ainda não houver se operado o vencimento do débito tributário. Nessa hipótese não há, efetivamente, suspensão da exigibilidade do crédito tributário, pois o crédito, embora existente, ainda não era exigível. Tem-se, em realidade, fato que impede a exigibilidade de instaurar-se.
Por outro lado, há situações em que a causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário é concretizada antes da própria constituição do crédito. Isso se verifica, claramente, nas hipóteses de concessão de medida liminar em mandado de segurança preventivo. Em tal circunstância, muito se discute sobre os efeitos da causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário. Seria um fato impeditivo da constituição do crédito tributário, figurando como obstáculo à expedição de ato de lançamento pela Administração Pública? Entendemos que não.
O ato de lançamento tributário, devidamente notificado ao contribuinte, confere existência ao crédito tributário. E o termo de existência não é impedido ou postergado por qualquer das causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário. Pelo contrário: para que possamos falar na suspensão da exigibilidade do crédito tributário é necessário que exista o crédito a ser suspenso. O fato suspensivo da exigibilidade do crédito tributário produz a paralisação da incidência de normas voltadas à efetivação do direito de o sujeito ativo exigir os valores do sujeito passivo. Por isso concordamos com Décio Porchat[18] no sentido de que, notificada a autoridade competente da medida liminar concedida, está deverá efetuar o ato de lançamento, constituindo o crédito tributário, para, depois disso, operar-se a suspensão da exigibilidade do gravame. Se assim não o fizer, sua inércia ocasionará a perda do direito de constituir o crédito tributário (decadência), nos termos do art. 173, I ou 150, § 4º, do CTN, conforme se trate de tributo sujeito a lançamento de ofício ou a lançamento por homologação, respectivamente.
Para evitar que se opere a decadência, cabe à autoridade administrativa exarar o ato de lançamento, constituindo o crédito tributário. Fica impedida, porém, de constituir créditos fiscais sancionatórios, visto que, tendo havido a suspensão da exigibilidade do crédito tributário antes do vencimento do tributo (termo a quo da exigibilidade), não há que falar em inadimplemento obrigacional. Na esfera tributária federal, o assunto foi disciplinado pelo art. 63, caput e § 1º, da Lei nº 9.430/96[19]. Mas a conclusão aplica-se, também, às esferas estadual e municipal, por tratar-se de efeito decorrente de disposição de norma geral de direito tributário, veiculada no art. 151 do CTN: essa regra suspensiva atinge a exigibilidade do crédito e não o crédito em si; implica a paralisação temporária dos efeitos da norma individual e concreta constitutiva do crédito tributário, mas não afeta a competência da autoridade administrativa de efetuar o ato de lançamento tributário.
A suspensão da exigibilidade do crédito tributário acarreta a impossibilidade de serem tomadas medidas voltadas à cobrança do gravame, motivo pelo qual entendemos não correr o prazo prescricional enquanto perdurar a causa suspensiva. Por outro lado, a constituição do crédito tributário não fica obstada, inexistindo paralisação do curso do prazo decadencial.
No mesmo sentido é a posição de Eurico Marcos Diniz de Santi[20], asseverando que “não há que se falar em suspensão do prazo decadencial do direito de o Fisco lançar”. Somente ficará obstando o transcurso desse prazo se a medida liminar não apenas suspender a exigibilidade do crédito tributário, mas for expedida de tal modo que venha a proibir expressamente a efetivação do lançamento. Nesse caso, tem-se situação excepcional, não prevista na legislação pátria, em que a determinação do Poder Judiciário suspende não apenas a exigibilidade do crédito tributário, mas impede a própria constituição do vínculo obrigacional.
6.2. O cumprimento de deveres instrumentais na hipótese de causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário
Toda norma jurídica é composta por hipótese e consequência, descrevendo critérios identificadores de um fato de possível ocorrência e prescrevendo condutas intersubjetivas deonticamente modalizadas[21]. Diante da homogeneidade sintática das regras do direito positivo, não foge a norma jurídica tributária a essa estrutura formal. No plano sintático, todas as normas jurídicas apresentam similar arquitetura, residindo a distinção entre elas apenas no plano semântico: somente quando observados os conteúdos de significação das variáveis lógicas das normas jurídicas é que podemos distinguir a norma jurídica tributária das demais.
A definição de norma jurídica tributária encontra-se vinculada ao conceito de direito positivo tributário, o qual, por sua vez, consiste no complexo de normas jurídicas válidas que se referem, direta ou indiretamente, ao exercício da tributação (instituição, fiscalização, arrecadação tributária). Esse o motivo por que Paulo de Barros Carvalho[22], ao analisar o núcleo semântico das normas jurídicas tributárias, menciona a possibilidade de agrupá-las em três classes: “a) normas que estabelecem princípios gerais, demarcadores da virtualidade legislativa no campo tributário; b) normas que estipulam a incidência do tributo, descrevendo os aspectos de eventos de possível ocorrência e prescrevendo os elementos da obrigação tributária (sujeitos e modo de determinação do objeto da prestação). (…) E, por fim, c) normas que fixam outras providências administrativas para a operatividade do tributo, tais como as de lançamento, recolhimento, configuração de deveres instrumentais e as relativas à fiscalização”.
Observa ainda Paulo de Barros Carvalho que, enquanto são numerosas as normas que estabelecem princípios gerais e que fixam providências administrativas para a operatividade do tributo, poucas são as que estipulam a incidência tributária. Assim, considerando a diversidade semântica apresentada pela expressão “norma jurídica tributária”, esse autor, com o propósito de afastar possíveis confusões terminológicas, sugere que se designe norma tributária em sentido estrito à norma impositiva tributária, também conhecida como regra-matriz de incidência, e norma tributária em sentido amplo a todas as demais.
Conciliando a terminologia acima proposta com os requisitos necessários à configuração do tributo, podemos definir norma jurídica tributária em sentido estrito como a norma cuja hipótese conota um fato lícito de possível ocorrência, prescrevendo, no consequente, relação jurídica que obrigue um sujeito de direito a entregar certa quantia em dinheiro a outro sujeito de direito. É a chamada norma-padrão de incidência ou regra-matriz de incidência, cuja aplicação faz surgir o crédito tributário.
Paralelamente a ela, existem normas destinadas a conferir operacionalidade ao sistema jurídico tributário, possibilitando a fiscalização e a arrecadação do tributo: são os deveres instrumentais ou formais, consistentes em prestações positivas ou negativas, realizadas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos (art. 113, § 2º, do CTN).
A suspensão da exigibilidade do crédito tributário consiste na inibição do processo de positivação das normas jurídicas veiculadoras do direito de o credor postular o recebimento do valor devido a título de tributo. Não inibe, contudo, a aplicação das normas prescritivas de deveres instrumentais. Estes permanecem exigíveis, conforme estipula o parágrafo único do art. 151 do Código Tributário Nacional.
6.3. O pressuposto jurídico da mora e sua inocorrência nos casos em que há cumprimento de norma individual e concreta suspensiva da exigibilidade do crédito tributário
A mora caracteriza-se, nos termos do art. 394 do Código Civil brasileiro, pela ausência do pagamento no tempo, lugar e forma previstos. Em se tratando de obrigação tributária, ocorre a mora quando o seu cumprimento dá-se em momento posterior àquele previsto na norma jurídica válida e vigente no átimo do vencimento do tributo.
Verificando-se a ocorrência da mora, duas espécies de normas jurídicas encontram aplicação: (i) norma que institui a multa pelo não pagamento do tributo e (ii) norma que determina a aplicação de juros em virtude do não pagamento da prestação devida no prazo fixado. Ambas têm em comum o fato de apresentarem, no antecedente normativo, a previsão do descumprimento de uma obrigação prescrita em outra norma, ou seja, a ocorrência de um ilícito (não pagamento do tributo na data aprazada). Por conseguinte, inexistindo desobediência à norma jurídica que determina quando o tributo deve ser recolhido, inocorre mora, não havendo lugar para a aplicação de multa e juros.
Isso se aplica, em tudo, às medidas liminares e tutelas antecipadas concedidas em favor do contribuinte para suspender a exigibilidade do crédito tributário. Sendo o Judiciário um dos órgãos encarregados de aplicar o direito, interpretando-o e expedindo normas individuais e concretas, suas decisões introduzem no ordenamento jurídico comandos direcionados à regulação de comportamentos intersubjetivos. Consequentemente, quando uma decisão judicial é posta, o comando por ela emitido deve ser seguido, sob pena de desencadear a aplicação da norma sancionadora.
Por outro lado, sendo obrigatória a obediência à prescrição normativa, quando o administrado segue a determinação de uma decisão judicial não lhe pode ser imposta sanção alguma. Todo aquele a quem é cometido um dever jurídico tem o direito de cumpri-lo. A Lógica Deôntico-Jurídica expressa esse enunciado na composição formal Op®Pp, significando que se alguém está obrigado à conduta “p”, então esse alguém tem a permissão de cumprir a conduta “p”. A permissão de cumprir a conduta está contida no modal obrigatório, da mesma forma que a permissão de omiti-la está igualmente contida na sua proibição Vp®P-p, que se lê: se alguém está proibido (V) de cumprir a conduta “p”, então esse alguém terá a permissão (P) de omiti-la.
Desse modo, havendo medida liminar ou tutela antecipada que prorrogue o termo final do pagamento do tributo, suspendendo sua exigibilidade, esta deve ser observada por seus destinatários. Trata-se de norma individual e concreta, produzindo todos os efeitos inerentes às normas jurídicas válidas e vigentes, fazendo nascer direitos e deveres subjetivos. E, se é juridicamente permitido o não recolhimento do tributo nas datas previstas em outras normas jurídicas que não a introduzida mediante a liminar ou tutela antecipada, não há como cogitar da ocorrência de mora. Não se pode admitir que ao cumprir os comandos da decisão judicial, exercendo direito que lhe está assegurado por ela, seja o contribuinte considerado em mora.
Todas as decisões judiciais prescrevem alguma ação ou omissão do destinatário, sendo expressão do dever-ser. O seu descumprimento, portanto, representa um ilícito, desencadeador da aplicação da norma sancionatória. Ao revés, seu cumprimento é o que objetiva o ordenamento jurídico, razão pela qual não há como cogitar de punição àquele que age em observância às suas determinações.
Por essas razões, quando o Judiciário reconhece o direito de o contribuinte deixar de recolher algum tributo em certa data, outorga-lhe um direito que só pode ser entendido como orientação do agir do destinatário em consonância com o dever-ser expresso pela norma. E, se a mora tem por pressuposto justamente o não cumprimento, na data aprazada, de uma conduta devida, não sendo descumprido qualquer dever normativamente prescrito, inconcebível falar em sua ocorrência. Se de acordo com a prescrição contida na norma individual e concreta o prazo para cumprimento da obrigação ainda não venceu, em virtude da suspensão da exigibilidade do crédito tributário, impossível falar-se em mora.
Havendo permissão, por meio de decisão judicial liminar ou de tutela antecipada, para que o contribuinte deixe de pagar certo valor a título de tributo, e, mais tarde, sendo esta cassada por algum motivo, costuma-se dizer que fica restabelecido o prazo originalmente estipulado como termo final do recolhimento do tributo. Nessa esteira, foi editada a Súmula nº 405 do Supremo Tribunal Federal, registrando que “denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária”. Isso não significa, entretanto, que os efeitos já produzidos devam ser desconsiderados e que os atos praticados sob sua égide devam ser analisados segundo os termos da decisão revogadora. Referida Súmula há de ser interpretada no sentido de que, cessados os efeitos da liminar (ou da tutela antecipada), o crédito cuja exigibilidade estava suspensa volta a ser exigível.
Em homenagem ao direito adquirido e ao princípio da segurança jurídica, a nova norma deve alcançar apenas fatos futuros: no átimo em que cessam os efeitos da liminar torna-se exigível o crédito constituído no passado. Admitir-se o contrário, esclarecem Estevão Horvath e José Roberto Pernomian Rodrigues[23], “seria reconhecer a inutilidade da atuação do Poder Judiciário no questionamento da legalidade/constitucionalidade dos tributos, bem como reconhecer que as decisões judiciais que não põem fim ao processo são inúteis, incapazes de amparar direitos dos administrados, o que não é o caso”. A exigência do recolhimento de multa e juros moratórios, numa hipótese como a suscitada, implicaria desconsiderar os efeitos da decisão judicial, que, apesar de introduzir no ordenamento jurídico norma individual e concreta, válida e vigente, seria como se não tivesse existido, visto que incapaz de afastar as consequências decorrentes do não pagamento no tempo previsto na norma geral e abstrata.
Mais ainda, estar-se-ia punindo o contribuinte que, no exercício do direito de ampla defesa, recorreu ao Judiciário, obteve decisão favorável e a cumpriu. Seria simplesmente absurdo admitir que se pudesse contemplar, como hipótese de incidência da multa e dos juros de mora, a circunstância de alguém agir em cumprimento da determinação judicial. Nesse sentido, pondera Geraldo Ataliba[24] que “sempre que alguém atua concretamente, na conformidade de um preceito normativo que lhe assegura o direito de assim atuar, não pode o intérprete jamais entender como ilícito tal comportamento. É mesmo logicamente inconcebível que um comportamento possa ser jurídico e antijurídico ao mesmo tempo”.
Entendimento oposto levaria à conclusão de que incorre em mora quem, recorrendo ao Judiciário, obtém decisão favorável e a cumpre. Mas tal posicionamento deve ser veementemente repelido. Inadmissível considerar-se inadimplente o contribuinte que acode ao Judiciário, mostrando uma pretensão no mínimo plausível e vendo concedida medida liminar em seu favor[25].
Esse é o motivo pelo qual, no âmbito dos tributos federais, prescreve a Lei nº 9.430/96, em seu art. 63, § 2º, que “A interposição da ação judicial favorecida com a medida liminar interrompe a incidência da multa de mora, desde a concessão da medida judicial, até 30 (trinta) dias após a data da publicação da decisão judicial que considerar devido o tributo ou contribuição”.
Nesse sentido manifestou-se também, recentemente, a Segunda Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça: “TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO. FINSOCIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE. SEGURANÇA DENEGADA. PAGAMENTO DO TRIBUTO DEVIDO NO PRAZO DO ART. 63, § 2º, DA LEI N. 9.430/96. AFASTAMENTO DOS JUROS E MULTA DE MORA EM RELAÇÃO AO PERÍODO EM QUE A LIMINAR VIGEU. [26]
Nas esferas estadual e municipal, entretanto, não costuma existir dispositivo com semelhante conteúdo. Todavia, é certo que o sujeito passivo protegido por uma decisão judicial não incorre em mora, visto que em tal situação não se pode falar em inadimplemento ou impontualidade, no sentido de descumprimento de dever legal. Nesse caso, tem aplicabilidade o disposto no art. 160, caput, do Código Tributário Nacional, que, na qualidade de norma geral de direito tributário (art. 146, III, da CF/88), estabelece: “Quando a legislação tributária não fixar o tempo do pagamento, o vencimento do crédito ocorre 30 (trinta) dias depois da data em que se considera o sujeito passivo notificado do lançamento”.
Disso depreende-se que, não havendo normas tributárias estaduais e municipais que fixem o prazo para pagamento do tributo cuja exigibilidade estava suspensa por medida liminar ou tutela antecipada posteriormente cassada, este deve dar-se no prazo de 30 dias contados da notificação da cassação do preceito judicial. Efetuado o pagamento nesse período, não há que falar em inadimplência ou em mora.
Corolário da inocorrência da mora é a inexigibilidade da multa e dos juros moratórios. Se estes resultam do descumprimento de um comando jurídico, inexistindo desobediência em virtude de uma outra norma jurídica, individual e concreta, responsável pela alteração da primeira, não se observa comportamento contrário ao determinado pelo ordenamento jurídico. Consequentemente, inexistindo mora fica obstada a cobrança de qualquer encargo moratório.
Com efeito, apenar-se com os consectários da mora aquele contribuinte que acode ao Judiciário e deste logo obtém proteção liminar, pelo fato de ela ter sido posteriormente cassada, significaria, indiretamente, obstar ou no mínimo desencorajar o acesso ao Judiciário. Se a lei não pode excluir da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, da CF/88), com maior razão a lei não pode ser interpretada de forma tal que o contribuinte que se utilize dessa prerrogativa resulte prejudicado. Inadmissível, portanto, qualificar de inadimplente o contribuinte que obtém medida liminar postergando o vencimento do tributo.
6.4. Suspensão da exigibilidade do crédito tributário e o livre exercício profissional
A Constituição da República, no art. 5º, XIII, assegura a todos o direito ao livre exercício do trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Somente a legislação que disciplina o exercício de determinada profissão pode impor condições, sendo terminantemente vedado à lei tributária fazê-lo, mormente se suas finalidades são exclusivamente arrecadatórias. Nesse sentido, reiteradas vezes pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal, com posterior edição da Súmula nº 547: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.
Sem dúvida, é defeso ao ente público aplicar sanções administrativas como forma de coibir o contribuinte a recolher tributos porventura devidos. Para essa finalidade, dispõe o Erário de meios próprios, como o processo executivo fiscal, que não impede, direta ou indiretamente, o exercício de atividade profissional lícita.
Por outro lado, para que se atenda à supremacia do interesse público, o Código Tributário Nacional, nos arts. 183 a 193, disciplina as garantias e os privilégios inerentes ao crédito tributário. Por garantias, esclarece Paulo de Barros Carvalho[27], “devemos entender os meios jurídicos assecuratórios que cercam o direito subjetivo do Estado de receber a prestação do tributo”. Dentre elas encontramos, portanto, prescrições relativas a providências voltadas a garantir a quitação do débito tributário.
Nesse sentido, o art. 193 do CTN prescreve que “salvo quando expressamente autorizado por lei, nenhum departamento da administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou sua autarquia, celebrará contrato ou aceitará proposta em concorrência pública sem que contratante ou proponente faça prova da quitação de todos os tributos devidos à Fazenda Pública interessada, relativos à atividade em cujo exercício contrata ou concorre”. E a prova dessa quitação se faz mediante certidão negativa de débitos, expedida nos termos do art. 205 do Código Tributário Nacional.
A suspensão da exigibilidade do crédito tributário, contudo, implica o impedimento de sua cobrança pela Administração Pública. Por isso, dispõe o art. 206 do CTN que, havendo crédito tributário cuja exigibilidade esteja suspensa, a certidão que o ateste terá os mesmo efeitos de certidão negativa de débitos, possibilitando o regular exercício negocial pelo contribuinte.
Ademais, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário obsta sua inscrição na dívida ativa, de modo que o contribuinte pode praticar atos de compra e venda sem que isso caracterize fraude contra a Fazenda Pública, regulamentada pelo art. 185 do CTN. Segundo esse dispositivo, “presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa”. E, prescreve o parágrafo único, essa presunção de fraude “não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficiente ao total pagamento da dívida inscrita”.
Vale anotar que essa redação do art. 185 foi dada pela Lei Complementar nº 118/05. Na redação original, o art. 185 referia-se a “crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução” (destacamos). Com base no preceito anterior, o Superior Tribunal de Justiça vinha entendendo que, para presumir-se fraudulenta a alienação de bens por sujeito em débito com a Fazenda Pública, seria preciso a distribuição da execução, com correspondente citação do devedor[28]. No entanto, com a nova redação conferida pela Lei Complementar nº 118/2005 ao art. 185 do Código Tributário Nacional, não se faz mais necessário o prévio ajuizamento do processo executivo ou mesmo a citação do devedor para fazer incidir norma presuntiva de fraude.
Referida alteração legislativa foi concebida para atribuir tratamento mais rígido às garantias do crédito tributário, prestigiando-se o interesse público subjacente ao resultado útil do processo de execução fiscal. Desse modo, suprimida a locução “em fase de execução”, diminuem-se os transtornos e as deficiências relativas à satisfação do crédito tributário, decorrentes da demora na propositura das ações de execução, demora esta que é causada, muitas vezes, por burocráticos trâmites internos. Pelo atual teor do Código Tributário Nacional, a presunção de fraude pode ser caracterizada a partir do momento em que o crédito for inscrito na dívida ativa.
Isso significa que, mesmo antes de proposta a execução fiscal, o comprometimento patrimonial dos bens do devedor já permite caracterizar ato fraudulento. Nesse sentido, examinando o conteúdo do art. 185 do CTN, conclui Paulo de Barros Carvalho[29] que, “inscrito o débito tributário pela Fazenda Pública, no livro de registro da dívida ativa, fica estabelecido o marco temporal, após o que qualquer alienação de bens ou rendas, ou seu começo, pelo sujeito devedor, será presumida como fraudulenta”. Mas, havendo a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, este não pode ser inscrito em dívida ativa, conforme demonstramos no item 5 deste trabalho, ficando obstada a aplicação do art. 185 do Código Tributário Nacional.
7. Conclusões
As causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário obstam o seguimento do processo de positivação das normas jurídicas tributárias, ficando a Fazenda Pública impedida de tomar providências voltadas à cobrança do tributo.
O crédito tributário, entendido como direito subjetivo de a Administração perceber valores a título de tributo, tem seu nascimento com a lavratura o ato de lançamento tributário ou, tratando-se de tributo sujeito a lançamento por homologação, com a expedição da norma individual e concreta pelo contribuinte. Em ambos os casos, a comunicação ao destinatário é imprescindível para que o teor normativo ingresse no sistema jurídico, sendo esse, portanto, o termo inicial da existência do crédito tributário.
A exigibilidade, por sua vez, indica o atributo do crédito tributário suscetível de ser cobrado pelo sujeito ativo. Esta surge com o vencimento da prestação tributária. Mas, para que possa ser objeto de execução forçada, o Código de Processo Civil e a Lei nº 6.830/80 exigem a constituição de título executivo, conferindo liquidez e certeza ao débito. A exequibilidade surge, portanto, em momento distinto e posterior à exigibilidade do crédito tributário, dando-se por ocasião da inscrição na dívida ativa, com a emissão da CDA correspondente.
Dessas noções conceituais, e considerando que a exigibilidade é característica de crédito tributário já constituído, concluímos que a concretização de causa suspensiva da exigibilidade tributária não impede a lavratura do ato de lançamento. O termo de existência do crédito tributário não é impedido ou postergado por qualquer das causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário, cabendo à autoridade administrativa exarar o ato competente para evitar que se opere o fato decadencial.
No que pertine ao prazo prescricional, este tem seu percurso paralisado enquanto perdurar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, visto que nesse período fica a Fazenda Pública impedida de tomar medidas voltadas à cobrança do gravame. Desse modo, enquanto perdurar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário não há que falar em mora ou inadimplemento, sendo descabida a aplicação de quaisquer penalidades.
Havendo decisão liminar ou tutela antecipada com efeito suspensivo da exigibilidade do crédito tributário, concedida antes do vencimento do tributo, sua cassação implica o restabelecimento da exigibilidade a partir desse instante, sendo descabido impor encargos moratórios em relação ao período de inexigibilidade do crédito tributário.
A suspensão da exigibilidade do crédito tributário inibe o processo de positivação das normas jurídicas veiculadoras do direito de o credor postular o recebimento do valor devido a título de tributo, não interferindo, todavia, na aplicação das normas prescritivas de deveres instrumentais.
Estando o crédito tributário com sua exigibilidade suspensa, assiste ao contribuinte o direito de exercer livremente suas atividades negociais, sendo-lhe assegurada a emissão de certidão que o ateste, produzindo efeitos semelhantes ao da certidão negativa de débitos. E, como a suspensão da exigibilidade do crédito tributário obsta sua inscrição em dívida ativa, resta inaplicável a presunção de alienação ou oneração de bens fraudulenta a que se refere o art. 185 do Código Tributário Nacional.
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Fabiana Del Padre Tomé
Mestre e Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora no Curso de Pós-graduação stricto sensu da PUC/SP. Professora nos Cursos de Especialização em Direito Tributário da PUC/SP e do IBET. Advogada. É autora da obra “ A Prova no Direito Tributário”, publicada pela Editora Noeses, já na 3ª edição.
[1] Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 474; Maria Leonor Leite Vieira, A suspensão da exigibilidade do crédito tributário, p. 39.
[2] As regras-matrizes de incidência tributária são exemplos de normas gerais e abstratas, ao passo que o lançamento tributário e sentenças consistem em normas individuais e concretas. Os veículos introdutores são típicas normas gerais e concretas, enquanto as normas individuais e abstratas podem ser identificadas nos contratos firmados entre pessoas determinadas, objetivando ao cumprimento de prestações se e quando se concretizar uma situação futura.
[3] Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário, linguagem e método, p. 168.
[4] Curso de direito tributário, p. 88.
[5] Teoria pura do direito, p. 260.
[6] Competência administrativa na aplicação do direito tributário, p. 204.
[7] Fabiana Del Padre Tomé, A prova no direito tributário, p. 55.
[8] Causalidade e relação no direito, p. 54.
[9] Lançamento tributário e “autolançamento”, p. 60.
[10] Curso de direito tributário, p. 386.
[11] Curso de direito administrativo, p. 162.
[12] Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 261.
[13] Paulo de Barros Carvalho manifesta posicionamento contrário à atribuição de imperatividade ao lançamento tributário, por entender que a Administração não pode atender a deliberações de sua vontade, sendo-lhe vedado gravar a conduta do administrado quando bem lhe aprouver (Curso de direito tributário, p. 408). Se, porém, considerarmos que essa constituição unilateral de obrigações opera-se sempre com fundamento em lei, não vemos por que negar ao lançamento tal qualificativo.
[14] A suspensão da exigibilidade do crédito tributário, p. 33.
[15] Manual de Direito Processual Civil, vol. III, p. 1.
[16] Ibidem, p. 45.
[17] Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 246.
[18] Suspensão do crédito tributário, p. 177.
[19] “Art. 63. Na constituição de crédito tributário destinada a prevenir a decadência, relativo a tributo de competência da União, cuja exigibilidade houver sido suspensa na forma dos incisos IV e V do art. 151 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1996, não caberá lançamento de multa de ofício.
§ 1º. O disposto neste artigo aplica-se, exclusivamente, aos casos em que a suspensão da exigibilidade do débito tenha ocorrido antes do início de qualquer procedimento de ofício a ele relativo. (…)”
[20] Decadência e prescrição no direito tributário, p. 182.
[21] Sobre os pormenores da estrutura normativa discorremos no livro Contribuições para a seguridade social à luz da Constituição Federal.
[22] Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 78-79.
[23] Efeitos da modificação de uma decisão judicial em matéria tributária. Revista de Processo nº 89, p. 56.
[24] Estudos e pareceres de direito tributário, p. 271.
[25] Eduardo Arruda Alvim, Mandado de Segurança no Direito Tributário, p. 221-222.
[26] AgRg no REsp nº 839.962/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. em 06/04/2010, DJ de 16/04/2010.
[27] Curso de direito tributário, p. 555.
[28] Nesse sentido, o REsp. nº 92.733/RS, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU 1 de 18/05/98, p. 30 e AgRG no AI nº 197.354/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, DJU 1 de 22/03/99, p. 181.
[29] Curso de direito tributário, p. 558.