PREFÁCIO do Ministro Teori Albino Zavascki
Distinguido com a oportunidade de apresentar a obra “Jurisdição Constitucional Tributária”, começo com uma palavra sobre o seu autor. Rafael Pandolfo é um dos mais talentosos representantes da nova geração de tributaristas brasileiros. Com sólida formação acadêmica (é doutor em direito tributário pela prestigiada PUC/SP), que continua cultivando na condição de professor conferencista e de diretor da Academia Tributária das Américas (ATA), associa sua labuta profissional advocatícia e consultiva à de membro titular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF). Essa virtuosa simbiose de experiências confere ao autor a rara e privilegiada condição de poder visualizar as questões de direito tributário sob os mais significativos enfoques: o do acadêmico, o do advogado da parte contribuinte e o do julgador.
E isso fica muito claro no modo como arquitetou a estrutura e desenvolveu o conteúdo da sua obra. Construiu, inicialmente, os pilares doutrinários e principiológicos essenciais para o desenvolvimento do estudo; e, depois, tomando-os como referências fundamentais e fundamentadoras, desenvolveu a exposição e propôs soluções para uma variada gama de importantes questões relacionadas à jurisdição constitucional no domínio do direito tributário. A norma jurídica, o crédito tributário, os princípios constitucionais sensíveis à atividade tributária (legalidade, segurança jurídica, irretroatividade, anterioridade, isonomia, livre-concorrência, capacidade contributiva), são temas da primeira parte do seu estudo, formando o ambiente para o desenvolvimento da sua segunda parte, que aborda mais especificamente o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade e a natureza e os efeitos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no controle incidental e no controle concentrado.
Não é preciso enfatizar que a jurisdição constitucional representa, atualmente, um dos campos de estudo e de pesquisa dos mais instigantes e importantes no direito brasileiro. Instigante pelos desafios que oferece a quem atenta para as suas características singulares e para o seu significado jurídico e político. E importante, pelos delicados problemas jurídicos que enfrenta e pelos resultados que produz, não apenas no plano normativo e formal, mas também, e sobretudo, no domínio social genericamente considerado, particularmente, no que se refere ao direito tributário, no das relações entre o Estado e os cidadãos.
Em sentido amplo, pode-se conceituar a jurisdição constitucional como toda a atuação do Poder Judiciário que envolva a interpretação e a aplicação das normas constitucionais. Nesse sentido, a jurisdição constitucional não é exclusiva do Supremo Tribunal Federal, mas de qualquer juiz; e ela se manifesta no exercício do controle de constitucionalidade das normas (ou seja, no controle da atividade legislativa do Estado), como também quando o Judiciário é provocado a decidir sobre a constitucionalidade de atos jurídicos ou de comportamentos individuais, sejam eles praticados por particulares, sejam os provenientes de agentes do Estado nas suas funções administrativas e mesmo judiciais.
Todavia, é inegável que o controle de constitucionalidade dos preceitos normativos, pela própria natureza da controvérsia que desperta e pelo caráter institucional do embate que provoca ao confrontar dois poderes do Estado, ganha significativo destaque no âmbito da jurisdição constitucional. “O aspecto mais sedutor”, escreveu Cappelletti a propósito disso, “diria também o aspecto mais audaz e, certamente, o mais problemático do fenômeno que estamos para examinar está, de fato, justamente aqui: o encontro entre a lei e a sentença, entre a norma e o julgamento, entre o legislador e o juiz” (Cappelletti, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 1984, p. 26). Essa constatação é especialmente significativa em face do sistema brasileiro, que consagra meios variados e sofisticados de controle de legitimidade da atividade legislativa.
É também inegável que o STF tem papel preponderante na jurisdição constitucional. A ele compete “precipuamente, a guarda da Constituição”, diz o art. 102 da Carta Magna, que se desenvolve, especialmente: (a) no âmbito da competência originária, nas ações de controle de constitucionalidade da atuação legislativa (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, ação de inconstitucionalidade por omissão e arguição de descumprimento de preceito fundamental); e (b) no âmbito da competência recursal, em julgamentos de recursos extraordinários, cabíveis quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição. O STF ocupa, assim, a posição mais importante no sistema de tutela de constitucionalidade, já que é o órgão de cúpula do Poder Judiciário e o Tribunal da Constituição. Suas decisões têm o peso e a autoridade dessa superior função institucional.
Pois bem, nessa sua “Jurisdição Constitucional Tributária”, Rafael Pandolfo apreendeu, com aguda sensibilidade jurídica, a força transcendental que emerge da conjugação entre a autoridade do STF e as decisões em controle de constitucionalidade de preceitos normativos. E o fez em sintonia com o estado-da-arte, especialmente no que diz respeito à natural eficácia expansiva dos pronunciamentos da Suprema Corte, inclusive em controle difuso de constitucionalidade. Sabe-se, com efeito, que, na jurisdição comum, as sentenças têm, em regra, força vinculante “nos limites da lide” (art. 468 do CPC), de modo que a certificação judicial da existência ou inexistência do direito questionado faz coisa julgada apenas em relação “às partes entre as quais é dada” (art. 472 do CPC). Na jurisdição constitucional, todavia, a situação tem peculiaridades: se, para decidir conflito individualizado, o julgador tiver feito um juízo – positivo ou negativo – a respeito da validade de uma norma, sua decisão ganha contornos juridicamente diferenciados, em face dos princípios constitucionais que ela mobiliza. É que os preceitos normativos têm, por natureza, a característica da generalidade, isto é, não se destinam a regular específicos casos concretos, mas, sim, estabelecer um comando abstrato aplicável a um conjunto indefinido de situações e de pessoas. Quando, portanto, se questiona a legitimidade desse preceito, ainda que no julgamento de um caso concreto, o que se faz é pôr em xeque também a sua aptidão para incidir em todas as demais situações semelhantes. Essa peculiaridade é especialmente relevante em face do princípio da igualdade perante a lei, de cuja variada densidade normativa se extrai primordialmente a da necessidade de conferir um tratamento jurisdicional igual para as situações iguais. É também importante em face do princípio da segurança jurídica, que estaria fatalmente comprometido se a mesma lei pudesse ser tida como constitucional num caso e como inconstitucional em outro caso semelhante, dependendo do juiz que a aprecia. É indispensável, assim, harmonizar a eficácia da decisão sobre a constitucionalidade da norma no caso concreto com as imposições dos princípios constitucionais da isonomia (que é absolutamente incompatível com eventuais tratamentos diferentes em face da mesma lei quando forem idênticas as situações) e da segurança jurídica (que recomenda o grau mais elevado possível de certeza e estabilidade dos comandos normativos). Eis aí justificada, portanto, a ênfase em afirmar que as decisões a respeito da legitimidade das normas, mesmo no controle difuso de constitucionalidade, têm vocação natural para assumir uma projeção expansiva, para fora dos limites do caso concreto.
É de alta significação, sob este aspecto, a força das decisões do STF em matéria constitucional. Com efeito, na linha de movimento evolutivo semelhante ao verificado em outros países, o direito brasileiro caminha no sentido de prestigiar cada vez mais o efeito vinculante dos precedentes dos Tribunais Superiores. Os passos iniciais dessa caminhada podem ser identificados já na Constituição de 1934, quando foi criado o instituto da suspensão, pelo Senado, da lei declarada inconstitucional pelo STF, mecanismo destinado a atribuir força de stare decisis aos precedentes, universalizando os efeitos da declaração de inconstitucionalidade tomada em controle difuso. Com a criação da representação de inconstitucionalidade (Emenda Constitucional 16/1965), passaram a ser desde logo vinculantes erga omnes as decisões do STF nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, o que foi sobremodo acentuado na Constituição de 1988, que ampliou o sistema e criou a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), e pela Emenda Constitucional 3/1993, que criou a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), instrumentos mantidos e aperfeiçoados pela Emenda Constitucional 45/2004 (artigos 102, I, a e §§ 1.º e 2.º, e 103). Essa última Emenda instituiu um novo requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, que é a demonstração da “repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei” (art. 102, § 3.º), tema regulamentado nos artigos 543-A e 543-B do CPC; e introduziu também o art. 103-A, autorizando o STF a aprovar súmulas vinculantes.
No plano infraconstitucional, o parágrafo único do art. 481 do CPC estabeleceu a vinculação dos órgãos fracionários dos Tribunais aos precedentes do STF em controle difuso de constitucionalidade. Mais recentemente, os artigos 543-A e 543-B do Código, ao disciplinar a “repercussão geral” para efeito de conhecimento de recursos extraordinários (art. 102, § 3.º, da CF), reafirmaram notavelmente e deram sentido prático à força dos precedentes da Corte Suprema. Desde logo, considerou-se como de “repercussão geral” a “decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal” (art. 543-A, § 3.º). Instituiu-se um sistema de decisão vinculante “quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia” (art. 543-B): o tribunal local seleciona “um ou mais recursos representativos da controvérsia”, a serem remetidos ao STF, ficando os demais retidos na origem; firmado o precedente pelo STF, ele servirá de norte para julgamento dos demais recursos (sobrestados) “pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se” (art. 543-B, § 3.º).
Essa explícita e intensa escalada legislativa – constitucional e infraconstitucional – em direção à força vinculante e expansiva das decisões do STF, mesmo quando aprecia situações concretas, impõe ao jurista atento, como foi o autor da presente obra, um olhar diferenciado para a eficácia dessas decisões e de suas substanciais peculiaridades em relação aos pronunciamentos emanados da jurisdição comum. Conforme enfatizou recentemente o próprio Supremo, seus julgamentos, mesmo em recurso extraordinário, têm, hoje, caráter eminentemente objetivo, mormente com a instituição do regime de repercussão geral (QO na AC 2.177, Pleno, Min. Ellen Gracie, DJe 20.02.2009). Conforme registrou o Min. Gilmar Mendes, referindo-se à força vinculante dos precedentes do STF no atual sistema, “é plenamente consentânea, portanto, com o novo modelo, a possibilidade de se aplicar o decidido quanto a uma questão constitucional a todos os múltiplos casos em que a mesma questão se apresente como determinante do destino da demanda, ainda que revestida de circunstâncias acidentais diversas” (QO no AgIn 760.358, Pleno, DJe 19.02.2010).
Eis aí, portanto, conforme já afirmado, o estado-da-arte no domínio da jurisdição constitucional. E é nesse desafiador cenário que Rafael Pandolfo desenvolve sua visão sobre o específico campo do direito tributário, apresentando os problemas e oferecendo a solução. Como é normal na ciência do direito, pode-se até não concordar inteiramente com o alcance das conclusões a que chegou o autor. Isso, todavia, de modo algum altera ou compromete o grande valor da sua obra, notadamente pela visão destemida com que enfrentou os desafiadores obstáculos que o tema oferece aos estudiosos dessa área quase inédita da literatura jurídica brasileira. Escrita em linguagem clara e de cuidadoso apuro técnico, a presente obra é especialmente qualificada por substratos colhidos em autorizadas fontes doutrinárias e na mais atualizada jurisprudência dos tribunais. Por isso tudo será, indubitavelmente, obra de referência indispensável para quem, na área profissional ou acadêmica, busca compreender as transformações do nosso sistema de controle de constitucionalidade e da eficácia das decisões proferidas, nesse âmbito, pela Suprema Corte.
Brasília, 20 de março de 2012