CHARLES WILLIAM McNAUGHTON é Advogado do Escritório Neumann, Gaudêncio, McNaughton e Toledo Advogados. Professor do Curso de Especialização em Direito Tributário da PUC-SP/COGEAE e do Curso de Especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Conselheiro do Conselho Municipal de Tributos de São Bernardo. Mestre e Doutor em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Especialista em Direito Tributário pela PUC-SP/COGEAE, o ilustre entrevistado publicou, recentemente, pela Editora Noeses, a obra Elisão e norma antielisiva – Completabilidade e Sistema Tributário. Em entrevista concedida à Consulex, CHARLES WILLIAM McNAUGHTON tece importantes considerações sobre elisão e norma antielisiva no Sistema Tributário brasileiro, levando o leitor a desejar perscrutar a matéria tributária com a mesma dedicação com a qual se detém em cada tema posto a sua apreciação.
Confira a entrevista:
Revista Jurídica CONSULEX – No contexto do “planejamento tributário”, qual a diferença entre elisão fiscal e evasão fiscal?
Advogado CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Planejamento tributário é o conjunto de medidas praticadas pelos contribuintes visando a uma redução de sua carga tributária.
Diz-se que há elisão, quando a redução da carga tributária é alcançada de maneira legítima, sem violação ao Sistema Tributário. Para concretizar a elisão, o contribuinte se aproveita dos diferentes regimes tributários que o próprio legislador cria, para se enquadrar naquele que importe a menor carga tributária. Portanto, bem ou mal, a elisão é impulsionada pelo próprio legislador.
Já a evasão configura-se pela economia tributária dolosa, com descumprimento de deveres instrumentais e o consequente pagamento de tributo inferior ao que seria devido.
CONSULEX – Houve a inserção, através da Lei Complementar nº 104/01, de uma norma geral antielisiva no ordenamento jurídico brasileiro?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Desde que a Lei Complementar nº 104/01 inseriu o parágrafo único ao art. 116 do Código Tributário Nacional, muitos juristas passaram a defender que foi inserido no sistema jurídico brasileiro uma norma antielisiva. Não compactuo com essa visão.
Entendo que uma norma geral antielisiva, em nosso Sistema Tributário, importa inconstitucionalidades insuperáveis. A aplicação de tal norma não convive com a estrita legalidade, princípio que é verdadeira cláusula pétrea e não pode ser mitigado por emenda constitucional, muito menos por lei complementar.
Juristas de altíssimo nível defendem que a estrita legalidade poderia ser relativizada em razão do princípio da isonomia e da capacidade contributiva. E há de se respeitar essa interpretação. Pessoalmente, creio que o sistema jurídico pode garantir a isonomia sem restringir essa garantia individual tão importante que é a estrita legalidade.
CONSULEX – Como isto poderia ser feito?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – De fato, como disse, a elisão tributária é impulsionada graças às diferenças de regimes tributários criados pelo próprio sistema jurídico. Ora, um modo de se combater a elisão, de maneira legítima, é instituir uma legislação com menos regimes tributários díspares que permitam vantagens tributárias para alguns privilegiados, que seja dotada de menos casuísmo e, por que não, menor complexidade.
A elisão tributária também pode ser combatida com o manejo de alíquotas pelo legislador, neutralizando ações de contribuinte que poderiam gerar vantagens.
Agora, o que não se pode é autorizar que uma autoridade administrativa, unilateralmente, cobre um tributo que não está previsto em lei para aquele caso concreto. Isso gera, não apenas, insegurança, como também arbitrariedade, e situações injustas, porque ora os planejamentos são considerados legítimos, ora ilegítimos, a depender da ideologia de quem julga. Portanto, um remédio criado para alcançar igualdade acaba gerando injustiça e insegurança jurídica.
CONSULEX – As normas antielisivas estrangeiras têm validade no Direito positivo brasileiro?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Nosso sistema jurídico tributário é, digamos assim, uma “jabuticaba”. E isso é maravilhoso! Não conheço sistema jurídico no mundo com uma Constituição tão minuciosa, tão preocupada em tecer diferentes competências, em prever garantias individuais aos contribuintes. Agora, a consequência dessa característica é que devemos tomar cuidado ao “importar” teorias antielisivas de outros sistemas jurídicos.
O fato é que, hoje, há uma mistura muito grande dessas doutrinas estrangeiras, um verdadeiro carnaval. Na construção, pela autoridade administrativa, dos “limites” ao planejamento tributário, é possível identificar a aplicação das denominadas “teorias antielisivas” do Direito estrangeiro, tais como a teoria do propósito negocial (business purpose test), a teoria da prevalência da substância sobre a forma (substance over form doctrine) e a interpretação econômica.
A autoridade administrativa, intuitivamente, crê que uma operação econômica é, digamos, “abusiva”. Um abuso é difícil de ser definido, porque ele envolve nossa sensibilidade valorativa, é algo emocional, difícil de ser racionalizado. Então, a autoridade passa a tentar legitimar essa intuição, dizendo que o negócio jurídico carece de racionalidade econômica, que não passa pelos testes do propósito negocial, da teoria da prevalência da substância sobre a forma etc., que é muito sedutor. Mas, temos um Código Civil tão rico em institutos que poderiam ser utilizados para tornar a discussão mais fundamentada juridicamente. É isso que eu proponho. Vamos olhar um pouco mais o que temos internamente, em nosso Direito, sem o percurso fácil de importar institutos alheios, produzidos em contextos diferentes.
CONSULEX – É imprescindível a existência de propósito negocial para a validade dos negócios jurídicos do contribuinte?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – A “doutrina propósito negocial” surgiu no início do século XX, nos Estados Unidos da América – há os que apontam também na Suíça – e sustenta que, para o aproveitamento de certos benefícios fiscais previstos em legislações específicas, o contribuinte deve ter objetivos que superam a mera economia tributária. O fato é que essa doutrina passou a ser ampliada, de modo que se sustenta que um negócio jurídico não pode ser oponível às autoridades fiscais, salvo se tiver objetivos que transcendam a esfera tributária.
Penso que uma aplicação acrítica e incondicional dessa teoria gera distorções graves e inadmissíveis. Imaginemos que dois contribuintes, com a situação econômica idêntica, realizam um planejamento tributário de mesma estrutura. Por alguma sorte qualquer, um deles pode justificar seus atos com um motivo extratributário convincente e o outro não. Qual será a consequência? Um deles terá o planejamento tributário aceito e o outro rejeitado. Assim, a situação econômica era a mesma, a estrutura do planejamento tributário, também, mas um dos contribuintes é punido com multa e juros; e outro, não. Onde está a justiça fiscal? Onde está a isonomia?
Por outro lado, creio, porém, que a teoria do propósito negocial pode ser aplicada em alguns casos, com muito cuidado, desde que fundamentada em nosso Direito Civil. Vou dar um exemplo: certos negócios jurídicos são tidos como contendo uma causa finalística, ou seja, eles existem para cumprir certa finalidade. O exemplo típico é o casamento, que existe para se constituir uma família. Imaginemos que surja uma isenção de Imposto sobre a Renda para os casados. Então, os contribuintes se casam “no papel”, mas vivem em casas diferentes, não sabem da vida de seu cônjuge, não têm a menor intenção de constituir família. E, no entanto, se aproveitam da hipotética isenção do Imposto sobre a Renda. Nesse caso, o que teria acontecido: os contribuintes teriam se servido de um negócio de causa finalística, mas não preencheram tal causa, praticando um ato com fim exclusivo de obter economia tributária. Nesse caso, entendo que a teoria do propósito poderia ser aplicada, com base no regime jurídico do casamento. Mas, vejam, estou falando de algo fundamentado em nosso Direito positivo. É preciso haver motivação jurídica! Em minha visão – e aqui a jurisprudência administrativa vai em sentido diferente –, a existência, ou não, de propósito negocial, isoladamente concebido, pouco diz sobre a legitimidade de um planejamento tributário. Mas, não é isso o que se vê na prática.
CONSULEX – Como podem ser entendidos os conceitos de dissimulação, fraude e abuso de direito para fins de desconsideração do negócio jurídico?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Entendo a dissimulação como a simulação parcial, em que um se utiliza de negócio não existente para encobrir outro.
Já a fraude à lei é instituto com diversas acepções distintas. Em uma interpretação, diz-se que a “literalidade da lei é seguida”, mas “seu espírito violado”. Não quero entrar no mérito aqui, se é possível seguir “a literalidade de uma lei”, porque é um problema teórico que envolveria reflexões mais cuidadosas. Mas, enfim, o que quero dizer, nesta oportunidade, é que essa violação ao “espírito da norma tributária” teria de pressupor uma interpretação bastante elástica da regra tributária, o que, na minha visão, iria de encontro ao princípio da estrita legalidade. Em outra acepção de fraude à lei, diz-se que uma norma imperativa é “driblada” pela aplicação de uma tal norma de contorno. A ideia de fraude à lei pressupõe que o juiz pode desconsiderar a aplicação da norma de contorno, determinando a imposição da norma imperativa.
Acho interessante como a doutrina costuma pensar essa relação entre “norma imperativa” e “norma de contorno” sem uma reflexão mais detida sobre a questão dos conflitos de normas. Em nosso ordenamento, não, necessariamente, uma norma que proíbe uma conduta é aplicável, de forma prioritária, em detrimento de outra que a permite. Há de se observar critérios de solução de antinomia de normas, tais como a hierarquia, especialidade e cronologia. Partindo dessa premissa, tenho que a fraude à lei em esfera tributária poderia surgir quando um contribuinte deixa de aplicar uma norma correta para se servir de outra que não seria aplicável em determinado caso. Seria, em outras palavras, uma espécie de violação dos critérios previstos pelo sistema jurídico, para solução de antinomia normativa. A título de exemplo, o contribuinte aplica uma norma genérica (norma de prestação de serviços) para contornar uma norma especial (norma que configura o vínculo empregatício), aproveitando-se de um regime tributário e trabalhista menos oneroso. É claro que não pode fazer isso, porque a norma especial é prioritária em relação à norma genérica.
O abuso de direito, por sua vez, pressupõe a prática de um ato permitido, com violações de princípios jurídicos. Acho muito complicado aplicá-lo no Direito Tributário, justamente em razão da estrita legalidade.
CONSULEX – Qual o panorama da jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais sobre o tema?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Inicialmente, digo que o CARF é um órgão de elevado nível, que merece o respeito de todos os profissionais do Direito. Seus membros, quer representantes do Fisco, quer dos contribuintes, são muito bem preparados e contribuem para o amadurecimento de nosso Direito Tributário.
Dito isso, creio que, na questão do planejamento tributário, ainda há o que evoluir. A jurisprudência do CARF tem sido, ora mais, ora menos, tolerante ao planejamento tributário. Quando se recusa um planejamento, costuma-se invocar a simulação, a fraude à lei, abuso, inexistência de propósito negocial e outras, muitas vezes para casos idênticos. Não há muita uniformidade, e, o que é mais grave, previsibilidade. Por outro lado, é compreensível que seja assim, afinal, o Direito convive com possibilidades de interpretações diversas.
Agora, tenho convicção de que essa situação será revertida. Não estou dizendo que o planejamento deva ser aceito, de forma ilimitada. Mas, há um consenso de que existe falta de segurança jurídica. Dada a excelência do CARF, creio que, com o tempo, maior segurança jurídica seja alcançada.
CONSULEX – Qual a relação entre norma antielisiva, norma antievasiva e a regra-matriz de incidência tributária?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Tenho para mim que a regra-matriz de incidência tributária é uma boa referência para se identificar a elisão e a evasão, bem como a norma antielisiva e a norma antievasiva.
A norma antievasiva visa desestimular ou dificultar que o mandamento da regra-matriz de incidência seja descumprido pelo contribuinte, desde que o fato jurídico tributário tenha sido verificado em determinada situação concreta. Assim, multas qualificadas ou agravadas são exemplos dessas normas. Outras, como “presunções”, também operam para coibir a evasão, facilitando a vida do Fisco de provar certos atos e evitando sonegação.
Já a norma antielisiva pode atuar de diversas maneiras. Mas, vou trabalhar aqui com o que chamo de norma “antielisiva genérica repressiva”. Entendo que a norma antielisiva repressiva genérica, na prática, permite que a autoridade administrativa tribute aquilo que a lei não prevê. Assim, o contribuinte realiza um comportamento pautado em planejamento tributário e, em razão dele, se desenquadra de um regime tributário mais gravoso. A norma antielisiva é mais ou menos assim: “autoridade administrativa, se identificar elisão tributária, faça o que for preciso para que o regime tributário mais gravoso seja aplicável, ainda que não haja subsunção entre esse regime e a situação concreta”. Se a autoridade pretende enquadrar um regime tributário a uma situação tal em que não haja possibilidade de enquadramento – ou subsunção, de duas uma: ou ela altera a lei, ou ela diz que aquilo que não aconteceu, aconteceu. Mas, na verdade, são duas maneiras distintas de se fazer o mesmo. Alterar a lei, expressamente, a autoridade não pode. Ninguém aceitaria. Então, ela faz uma espécie de mágica: “desqualifica” o ato praticado pelo contribuinte. Ela cria uma “ficção jurídica” individual e concreta. No fundo, o que ela está fazendo é permitir uma tributação sem previsão em lei. A tal “desqualificação” nada mais é senão uma fraude ao princípio da legalidade.
CONSULEX – Nesse contexto, sua obra Elisão e norma antielisiva – Completabilidade e Sistema Tributário traz interessante proposta de interpretação do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional.
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Minha proposta é que o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional seja tido como uma norma antievasiva, ratificando que a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos praticados com dissimulação. É claro que essa intepretação que proponho importar outorgar a esse dispositivo uma função, digamos, redundante, no sistema jurídico. Isso é uma crítica importante e devo conviver com ela. Ainda assim, tenho que uma norma antielisiva repressiva genérica apresentaria tamanha inconstitucionalidade, em nosso sistema jurídico, que não poderia ser aceita. Dos males, o menor.
CONSULEX – Há outros projetos profissionais e acadêmicos em que está envolvido e merecem destaque?
CHARLES WILLIAM McNAUGHTON – Atualmente, atuo na Advocacia, especificamente, nas áreas de Direito Tributário, e fusões e aquisições. Tenho uma vida acadêmica relativamente intensa. Há doze anos me encantei com uma corrente chamada de “constructivismo lógico-semântico”, que é encabeçada, hoje, pelo grande Jurista, o Professor Paulo de Barros Carvalho. Desde então, busco me aprofundar nessa linha teórica e contribuir para sua divulgação, seja por meio de aulas, artigos ou livros.